Um irmão mal sintonizado
«(…) Depois de quase três anos de governação sossegada, o reinado de Duarte
I encontrou-se com o seu verdadeiro destino. Incomodado, sentiu-se desconfortável,
transformando pensamentos em imagens sombrias. Isto porque se registam acontecimentos
que o ultrapassam, revelações que não consegue confirmar, mas que alimentam
pressupostos preocupantes. Surpreende conversas que acabam quando se aproxima,
recebe pedidos dos grandes nobres para abandonarem o país, razão mais do que
suficiente para o rei pensar que algo está para acontecer. Indisposto com o
clima do diz-que-disse, boatos intencionalmente infundados e de origem
desconhecida geram no rei uma grande necessidade de descobrir o que até ver não
passaria de suspeições. O rei, sempre temente a Deus e à Santa Madre Igreja,
sem contudo partilhar os obcecados fundamentalismos do infante Henrique ou os
exageros devocionais do infante Fernando, ficava mais perto da pragmática
militância cristã do infante Pedro. É dentro deste estado de espírito que receberá,
sem entender porquê, um pedido de audiência do irmão mais novo, o qual considerou
despropositado, dada a relação próxima que tinha com ele. Deste modo pensando,
como resposta, Duarte I mandou ao irmão um mensageiro sem mensagem escrita,
pois não pretendia ser demasiado protocolar, quando a pessoa a quem se destinava
o recado não era de cerimónias: sua
senhoria o nosso amado rei, enviou-nos dizer que vos espera; pediu-me também
que vos lembre de que sereis sempre bem recebido, isto porque não percebe o
tamanho de tanta formalidade.
Desmontando da alimária, em vénia respeitosa, o cavaleiro ficou a
aguardar por uma resposta. Enganou-se. O infante Fernando, um tanto desarmado,
pressentiu no recado do rei uma crítica, e deste modo apenas permitiu ao homem
desfazer o salamaleque e aguardar pela réplica, porque tinha ainda de pensar na
refutação. A resposta deveria ser simples, refutar era desajustado, um sim ou
um não chegavam, por que razão se punha o infante Fernando numa posição
defensiva e de semblante fechado? Sem aviso, o infante virou as costas ao cavaleiro na direcção da casa, por
coincidência localizada nas suas terras de Salvaterra, mesmo ao lado do
Paço de Almeirim, que com elas fazia extrema e onde o monarca Duarte se quedava
por essa altura. João Rodrigues, escudeiro servil, homem da sua intimidade e
confiança, foi atrás dele. Conhecia-lhe os hábitos e toda as sequências do
quotidiano, e nesta conformidade o aio não tinha qualquer dúvida sobre o
caminho que levavam os seus passos, encontrando-o junto do altar da capela
pessoal, dentro da câmara, onde muitas vezes resistia ao sono para em oração se
oferecer a Deus. Era uma rotina diária, preenchida de constantes e piedosas rezas,
acrescentando à sua extensa lista de divindades outros motivos para rezar.
Sem mais santos para velar, continuava as preces entremeando vigílias
com jejuns diários, em nome das construções imateriais que lhe devoravam a
cabeça. Dominado pelo sectarismo religioso, entregava a alma a Deus, a Cristo,
a todos os santos, também à Igreja, que lhe alimentava o facciosismo e ficava com
os bens. João Rodrigues, quase a sua alma gémea, convivia com todo este fervor
religioso, ele próprio partilhava os serões e as sentinelas, privando-se do
sono para seguir disciplinado o seu amo. É verdade que ultimamente lhe tinha
espreitado no semblante um abatimento fora do habitual, já não o cansaço
provocado pela fome e pela subtracção do sono, apercebendo-se de que se tratava
de uma coisa mais íntima, um sentimento que o fazia sofrer, e já não o êxtase
do sofrimento. Preocupado, deteve-se de pé junto da ombreira da porta do
quarto, em silêncio, à espera que o infante Fernando pusesse fim à mediação
encetada com a divindade e lhe revelasse a resposta que havia de dar ao
escudeiro de do irmão Duarte. De onde estava via-lhe sem dificuldade as costas,
não tão bem como se o visse à luz do dia, mas o suficiente para lhe ver
explícitos os contornos do corpo genuflexado. Reparou como o infante se levantou
lentamente e como fez a última saudação, seguida do sinal da cruz, ligações
divinas mais eficazes quando feitas sob restrição da claridade, dentro dos
templos, que neste caso era um pequeno oratório no interior do quarto. Viu-o
depois virar-se, seguir na sua direcção, percorrer a distância de cabeça baixa
e olhar no chão, parando para lhe dirigir a palavra mansa, monocórdica,
enlevada: dizei ao criado do rei que
quinta-feira depois da vigília da Santa Cruz de Setembro, mais para a tarde, me
avistarei com ele e que lhe agradeço o tempo que se dispõe ceder-me. Depois,
só para João Rodrigues ouvir, lembrou-o: amanhã
não posso, é quarta-feira, jejuo todo o dia. A tal quinta-feira chegaria.
Duarte I, numa tarde aborrecida cheia de trabalho, viu chegar o irmão até si e
saudá-lo pronunciadamente, gerando nele um comentário enfastiado. Senhor, meu
irmão, de vós não mereço tamanha reverência, disse-lhe o rei». In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
Cortesia de CAutor/JDACT