Literatura de Corte:
Cantigas de Santa Maria e Cantigas de
Maldizer e D’escarno
«(…) Não dizemos,
naturalmente, que as componentes em que os poetas adoptam tais expressões sejam
decididamente as mais narrativas do repertório d’escarnho. Na realidade,
as cantigas mais interessantes quanto a este último aspecto são, como se disse,
aquelas em que as anedotas são narradas directamente e sem preâmbulos. Nota-se
aqui a presença de hábeis escritores, como Martin Moxa, Ayras Nunes, Martin
Soares, Joan Soares Coelho, Afons’Eanes Coton e Fernan Velho, para não citar
senão alguns. Os temas preferidos são os do eterno triângulo erótico, da diversidade e da perversão sexual, do
esgotamento senil e da incapacidade. As técnicas preferidas são as que se
baseiam na antífrase e na onomástica alusiva. O recurso à antífrase serve,
obviamente, para reforçar a zombaria:
Con alguen é’qui Lopo
desfiado
a meu cuidar, ca lhi
viron trager
un citolon mui grande
sobarcado, …
Assim, Martin Soares
apresenta a história de um duelo no qual está envolvido o jogral Lopo. Este não
leva armas para o duelo mas apenas a sua rabeca; bastar-lhe-á cantar para pôr
em debandada os adversários, pobres diabos verdadeiramente infortunados! Todo o
conto se baseia numa infracção: às aparências exteriores corresponde uma
realidade de que só o poeta tem conhecimento. Fazendo uma escolha ideal, o
narrador, autêntico jogral, mima as fases mais importantes da história,
preparando o seu público para a risada final:
E pois lhi Lop’ouver
[ben ] citolado
se i alguen chegar, polo
prender,
diz que é mui corredor
aficado;
e de mais, se cansar ou
se caer,
e i alguen chegar polo
filhar,
jura que alçará voz a
cantar,
que non aja quen dulte,
mal pecado.
Poderíamos continuar a série das citações, ou analisar o repertório
obsceno das cantigas, muitas vezes mais vivo e divertido. Pensamos, todavia,
ter já atingido o nosso objectivo, que era o de demonstrar como se não pode excluir
de uma história das formas narrativas medievais a sátira jogralesca das
cantigas d’escarnho. Claro que estas composições, como de resto as Cantigas
de Santa Maria, são literatura requintadamente cultivada no ambiente da
corte, não gozando duma efectiva difusão para além do círculo restrito desse
ambiente. Ainda que o riso jogralesco pareça dirigido de cima, está ligado a factos
contingentes, muitas vezes a verdadeiras anedotas de crónica miúda. Tenta-se a
paródia da literatura de corte, mas o público continua a ser o mesmo; os textos
não se difundem (como por exemplo os fabliaux ou a matéria de Bretanha) em meios sociais mais vastos; não atingem as
camadas mais populares. As cortes ibéricas surgem-nos assim, neste aspecto,
extremamente fechadas, sobretudo a portuguesa. É significativa, a tal
propósito, a extrema pobreza do património manuscrito da lírica do século XII.
Sem a intervenção ocasional, no século XVI, do humanista italiano Angelo
Colocci que fez transcrever os dois apógrafos italianos, disporíamos hoje de um
único testemunho: o códice da Ajuda. Tradição estéril, exactamente
porque relegada para o âmbito da corte. Como observa justamente Giuseppe
Tavani, a transmissão da lírica
galego-portuguesa fica confinada ao próprio ambiente que a produziu, e que, num
primeiro momento, não se apercebe da urgência de multiplicar as colectâneas
antológicas destes textos; que mais tarde os despreza como superados pelo
desenvolvimento de outras modas literárias. Quer dizer: falta à lírica galego-portuguesa
o contributo do interesse filológico por parte de uma cultura e de uma
sociedade exteriores a ela que lhe cuidem da conservação, do estudo e da
transmissão; mas falta-lhe também, dentro da sociedade que a produziu, o
suporte dum activo interesse cultural e estético, coadjuvado por adequados
meios económicos. Os dois polos em torno dos quais gira a maior parte da actividade
literária no Portugal medieval são, por conseguinte, a corte e o convento. Para
descobrir os traços, ainda que indirectos, duma difusão mais ampla dos textos
literários é preciso explorar com cautela a intrincada floresta constituída
pelo romance de cavalaria». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística
na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões,
Instituto Camões, volume 38, série Literatura, 1979.
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