O importante não é aquilo que
fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In
Jean.Paul Sartre
«(…) Os gemidos da parida ecoam na casa inteira, mas deles não se fez
menção no corredor, quando, se bem lembrados, o conde caminhava em direcção ao
salão, é que os gemidos femininos enrodilham-se com os de prazer, mesmo que
carreguem dor, não se quereria com certeza enoitecer dona Margarida com
cogitações depravadas como as que teve o conde e não se disse, porque conde é conde
e tem licença de pensar o que quer, sua mente é elevada, não fosse ela nobre e
de azul, no sangue e nunca ninguém o arguiria de ser porco, apenas de ser
homem. Esta que aqui vemos é Conceição Genoveva a caminhar no corredor, uma das
serviçais do solar, nas mãos carrega uma bacia de água quente denunciada pelo
vapor e nos ombros umas quantas toalhas, acessórios de grande necessidade para a
parida, sigamos a coitada da Conceição Genoveva, sempre dedicada às causas do
trabalho, às causas da casa e nesta hora de grande causa que não se delongue em
chegar ao quarto de dona Margarida que já a aguardam em grande desassossego, não
fossem todos os partos uma invariabilidade de probabilidades e consequências
provocadas por actos, por vezes, também eles, inconsequentes o que não é o
caso, não fosse o coronel José Silveira homem de grande responsabilidade e
apreço pelo que de seu é, que há nove meses aguarda a consequência do seu acto
consequente de gerar um filho varão, ele que com certeza o terá gerado porque
para isso labutou, mas nunca se confie na jura, conjura, das mulheres que geram
o que bem entendem e nada dizem a ninguém, prova disso sabe ele que por quatro
vezes varão gerou e saiu mandriona, senão repare-se nos seus quatro rebentos
que por ordem do mais antigo para o mais novo dão pelos nomes de Josefina,
Matilde, Eva e Manuela filhos de dona Margarida que muito penou por causa
dessas consequências, varão é o que se pede e se desta não vier será a quinta e
derradeira oportunidade para redimir o seu erro e afronta ao coronel. Esta que
aqui vemos é Conceição Genoveva que já chegou ao quarto de dona Margarida e que
também sabe a aflição em que está a sua senhora, não conhecesse Conceição
Genoveva o empenho com que o coronel combate as noites de insónia, não
conhecesse ele as suas entranhas, ela que também deu uma mandriona ao seu
Alfredo, o mordomo que abriu a porta ao conde, quando este pediu um varão, mas
que importa se compreendeu muito melhor que o patrão que nem homem nem mulher
têm mão nisso.
Dona Margarida está deitada no centro da cama suada, com as pernas abertas
e a respiração irregular, um esgar de dor atravessa-lhe o rosto que mesmo nesta
hora mantém uma beleza religiosa de urna mulher pudica e de bons princípios, que
cedo acabe este martírio, pensa dona Margarida, qual deles, perguntamos nós, o
grande e nobre martírio do parto, que torna todas as mulheres melhores do que
qualquer homem, não fossem as mulheres mães de todos os homens ou o martírio
das preces e rezas não terem sido ouvidas e não dar ao seu coronel, pela quinta
vez o tão desejado filho varão, a si o que de seu é, o pensamento é de dona
Margarida e com ela ficará. Inácia é a parteira de serviço, formada no ofício
pela vida e pelos antepassados da família, raro é o parto na terra que não seja
feito pela velha Inácia cuja idade não interessa para aqui e se ela não quer
que se saiba assim será respeitada a sua vontade. Respire Margarida. Respire.
Descanse um pouco. É tudo como das outras vezes, fala Inácia acalmando a
paciente numa voz tema e amiga, se há coisa que nunca muda é a forma de ter os
filhos e nada mais simples do que simples conselhos. Tenha calma minha senhora,
conforta Conceição Genoveva, pousando a bacia de água escaldada e as toalhas
junto à cama. Tudo vai correr bem.
Vamos lá mais uma vez, ordena Inácia posicionando-se junto à saída, no
meio das pernas de dona Margarida. Força, vá, força. E força faz dona Margarida
e mais detalhes não são precisos porque disso já muito se sabe ou não fôssemos
todos filhos de uma mãe e pais somos ou seremos, dependendo da história de cada
um, porque nisso cada um sabe de si e decide, a não ser nos actos inconsequentes
que hoje também tem remédio. Avancemos até à saída onde já Inácia tem o rebento
nas mãos, de cabeça para baixo, seguro pelas pernas, dá-lhe duas palmadas
fortes no rabo e solta-se o choro do recém-nascido, são todos iguais quando
nascem, são todos fêmea e macho pelo choro, e preciso olhar mais, em baixo,
sabem bem onde, portanto olhem e mais não se diga Porque já tudo se sabe, não
há penduricalho, é fêmea portanto, e Deus livre e guarde dona Margarida de uma
sova imponente preparada com requinte, mas que importa isso se acaba de pôr os
olhos na bebé mais bonita que alguma vez vira, que vale uma ou mais sovas das
mais imponentes, que venha o coronel com o seu chicote ou com o seu cinto, que
a prenda à cama e que lhe bata porque nada equivale o vislumbre de um ser como
aquele, que emana uma aura de paz, tranquilidade e beleza e que é sua, só sua,
saída de si, e que vale todas as horas de sofrimento e de asco no quarto com o
coronel, nas suas intermináveis investidas sexuais onde repetia aos solavancos,
suado e sujo, é para o macho, aqui vai macho, toma macho, e que ela recebia
sabendo que seria o que Deus quisesse, mas que desejava que o fosse, no fundo
do seu coração, para não ter de o ouvir, mas agora o mal está feito, da afronta
já não se livra, nem do desrespeito a que, pela quinta vez, submete o coronel a
submetê-la ao castigo, mas, pela terceira vez, nada disso importa, porque a
pequena, com apenas alguns minutos de vida, vale tudo isso por razões que a ela
e não só a ela dizem respeito e mais não se falará disso por agora». In
Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN
972-731-176-8.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT