O passado relativiza-se no presente
«(…) Quando um
historiador insiste, como tem a obrigação de fazer, junto de outros cientistas
sociais, em que é necessário historizar as análises deles, que são demasiado ou
exclusivamente presentistas ele não
está a falar, ou pelo menos, não deveria estar, em acrescentar uma cronologia
dos acontecimentos ao seu texto. No que ele insiste é em que o presente
incorpora o passado, que o passado faz parte integral do presente, e que ele
tem de ter isso em conta, não deve pressupor que a fácil teorização do presente
se aplica eternamente. Mas, ao mesmo tempo, Magalhães Godinho fala aos
historiadores que abandonam a selecção
com facilidade porque, assim confundindo tudo, não explicam nada. Há, pois, um
caminho estreito a seguir, nem a distorção
que as paixões do presente implicam nem a sedutora retirada das paixões do
presente que nos cercam, nos formam e nos determinam largamente. É preciso ser
intelectual, o que é uma tarefa muito mais difícil do que ser um erudito
pedante.
Um intelectual é sempre
e necessariamente um intelectual público,
mesmo, ou até sobretudo, quando o nega. A negação, quando não a hipocrisia, é
de bom tom em muito lado. Como é que
se pode seguir esse caminho estreito? Sugiro que existem três momentos
de pensamento: a análise sistemática e historizada; a escolha moral; as
implicações políticas. São três tarefas diferentes e distintas, mas muito
imbricadas umas nas outras e, no fim de contas, indissociáveis. Cada um de nós
realiza os três momentos cada vez que pensa. E fazê-lo com conhecimento de
causa é sempre mais sensato. Parece-me que Magalhães Godinho o
demonstrou biograficamente, oferecendo-nos o exemplo de como ser um intelectual
coerente, isto é, comprometido e público. Os três momentos de pensamento são
sucessivos e cada tarefa tem as suas regras próprias. É preciso começar sempre
pela análise. Quando não, arriscamo-nos a fazer não poucas asneiras. E este
esforço é contínuo; não termina nunca. Todos nós temos um fundo de
conhecimentos limitado. E o mundo está em constante mudança. Há, pois, sempre
muito a aprender, muito a analisar, muito a repensar e, sobretudo, muito a despensar.
E, evidentemente, e por causa disso, não devemos demorar demasiado a revelar o
que supomos ter aprendido. Esperar pela certeza é esperar pelas calendas
gregas.
Mas uma vez feita a
análise, como evitar as escolhas
morais? Elas estavam já implícitas na nossa escolha de tema, de
variáveis, de dados, e de métodos, mau grado todos os nossos esforços para
minimizar as tendenciosidades mais evidentes e para proporcionar uma exposição
que seja convincente e resista à demolição fácil dos nossos críticos. Não
obstante, temos de assumir as nossas simpatias, os nossos juízos. Como
poderíamos sugerir que os que são menos aptos para a análise são, apesar disso,
mais aptos para as escolhas morais que
dela derivam? Ninguém pode evitar as escolhas morais, sobretudo, diria
eu, um intelectual. Se não, o intelectual é como alguém que coloca na rua um
explosivo potencial sem o confessar e deixando aos outros o encargo de o neutralizar. Não estou a dizer que as
escolhas morais do intelectual são as únicas possíveis. Longe disso. Toda a
gente pode e deve tirar as consequências da análise. O que estou a dizer é que
o intelectual não tem o direito de dizer que se desliga deste dever comum.
Aliás, estou a dizer que ele nunca se desliga. E quando finge fazê-lo, é uma
maneira de aceitar, talvez mesmo de apoiar, as escolhas de outros, sobretudo
dos que detêm o poder.
Mas não chegámos ainda
ao fim da participação inevitável do intelectual na vida pública. O intelectual
compromete-se, por natureza, a analisar a forma de levar à prática as escolhas
morais que derivam da sua análise. Isto é uma tarefa política, no sentido amplo
da palavra político. Há muitos meios
de prosseguir essa análise política, através da vida política pública, através
da imprensa, através dos testemunhos. Pouco importa. Depende das situações
locais diferentes, das possibilidades que se apresentam a todos. Mas, mais uma
vez, não há alternativa. O intelectual que tenta evitar esta parte do seu papel
cede o seu dever, deliberadamente ou não, aos outros. Não basta dizer que se
participa como cidadão. Participa-se também como intelectual. E isto porque
outros usam as análises sistemáticas e historizadas já feitas para justificar
as suas políticas. O intelectual é, pois, obrigado a descer à arena para
defender a boa interpretação daquilo que escreveu ou que escreveram os seus
colegas, sobretudo aqueles que não estão em condições de o fazer eles próprios.
O intelectual permanece sempre um cidadão intelectual, com o encargo perpétuo
de ajudar à clareza e à clarificação das decisões.
Uma visão de futuro
Ouso fazer apelo à obra
e ao exemplo de Magalhães Godinho para traçar um programa de trabalho
para o nosso novo século. Este resume-se à palavra de ordem já lançada e bem
conhecida da história total, a que Magalhães Godinho e um bom número de
outros investigadores se dedicaram desde há bastante tempo mas que só constitui
um compromisso para uma minoria de investigadores pelo mundo fora, uma minoria
que continua bastante sitiada. Mas que
quer dizer na prática a história total? Parece-me que há quatro debates
a resolver, quatro caminhos a seguir. O primeiro continua a ser a
respeito de saber qual é a unidade de análise útil, frutuosa, plausível. Quando
falamos da descoberta da economia-mundo, escolhemos uma resposta possível a
esta pergunta. Não vou fazer de novo a justificação de uma tal categoria.
Gostaria simplesmente de sublinhar o facto de que aceitar essa designação está
longe de resolver todas as dificuldades». In Immanuel
Wallerstein, A descoberta da economia-mundo, Comunicação ao colóquio Le
Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de Vitorino Magalhães Godinho,
Paris, 2003, Revista Crítica de
Ciências Sociais, nº 69, 2004.
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