segunda-feira, 31 de agosto de 2020

No 31. O Espelho Negro. Crónicas de Bridei. Juliet Marillier. «Contudo, Broichan presente o perigo que ela representa, pois a jovem poderá vir a ter um papel importante no futuro de Bridei…, ou causar a sua perdição»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Escócia, século VI. Bridei tem quatro anos quando os seus pais o confiam a Broichan, um poderoso druida do reino de Fortriu, com quem aprenderá a ser um homem erudito, um estratega e um guerreiro. Bridei desconhece que a sua formação obedece ao desígnio de um concelho secreto de anciãos e que está destinado a desempenhar um papel fundamental no destino do instável reino de Fortriu. Porém. Algo irá mudar para sempre o seu mundo e, provavelmente, arrasar os planos de Broichan: Bridei encontra uma criança, ao que tudo indica abandonada pelos Boas-Gente. Todos concordam que o melhor será assassiná-la, mas Bridei decide salvá-la a todo o custo. E assim, ambos crescem juntos, e a bebé Tuala transforma-se numa bela mulher. Contudo, Broichan presente o perigo que ela representa, pois a jovem poderá vir a ter um papel importante no futuro de Bridei…, ou causar a sua perdição». In Sinopse

«O druida estava à entrada, imóvel como uma figura esculpida em pedra escura, observando os cavaleiros a subirem a encosta. A noite estava a chegar. Para lá do bosque de carvalhos, via-se o brilho suave do Lago da Serpente. À luz do crepúsculo, as gralhas recolhiam, fazendo ouvir a sua linguagem entrecortada, secreta. Era Outono. A festa do Equinócio já passara. O ar estava azul, tão frio que custava a respirar. Os guerreiros aproximaram-se da entrada e, uns a seguir aos outros, desmontaram. A princípio, parecia que não tinham trazido o rapaz. O druida escondeu um misto de desapontamento, frustração e ira. Foi então que Cinioch, o último a desmontar, disse: toca a andar, rapaz, mexe-te, e Broichan viu o pequeno vulto a cavalo. Viera sentado atrás de Cinioch. Estava bem agasalhado por tecidos de lã. Os outros ajudaram-no a desmontar e fizeram-no avançar até ao druida, para uma verificação rigorosa. Tão pequeno. Teria cinco anos, como dissera Anfreda na carta ao avisá-lo da sua escolha? Ainda era muito pequeno para ser enviado para Fortriu, que ficava tão longe de casa, e também era muito pequeno para aprender. O druida sentia a fúria aumentar. Esforçou-se por controlar a respiração.

Eu sou Broichan, disse, olhando para baixo. Bem-vindo a Pitnochie. O rapaz levantou, os olhos e examinou o rosto de Broichan, depois o manto escuro, o bordão de carvalho com desenhos intrincados e o cabelo preto, cheio de tranças pequenas, presas por fitas coloridas. Mas o rapaz tinha as pálpebras semicerradas; estava a dormir em pé. Gwynedd era longe, a duas luas de jornada. O druida observou-o em silêncio a endireitar os ombros, a erguer o queixo, a respirar fundo e a franzir as sobrancelhas, concentrando-se. Eu sou Bridei, filho de Maelchon, disse o rapaz com voz pouco segura mas clara. Em seguida, respirando fundo novamente prosseguiu, esforçando-se por não dizer disparates: que a... A Que Brilha ilumine o teu caminho. Olhou para Broichan. Tinha os olhos azuis como duas celidónias; via-se no olhar que tinha medo, era evidente, mas aquela amostra de gente não se deixava intimidar e, graças aos deuses, Anfreda ensinara ao filho a língua dos Priteni. A tarefa de Broichan seria mais fácil. Talvez, afinal de contas, ele não fosse demasiado novo apesar dos quatro anos. Que a Guardiã das Chamas aqueça o teu coração, disse Broichan, respondendo apropriadamente. O druida escrutinou as feições miúdas de perto. O queixo firme era o de Maelchon, assim como o porte altivo e aquela vontade de ferro que lhe mantinha os olhos abertos apesar do sono e lhe recordava as palavras certas naquele mundo estranho onde acabava de acordar. Os doces olhos azuis, os cabelos castanhos encaracolados, a testa franzida, eram de Anfreda. O sangue dos Priteni corria com força nas veias daquela criança. A mãe fizera uma boa escolha. O druida estava satisfeito. Vem, disse Broichan. Vou mostrar-te onde vais dormir. Cinioch, Elpin, Urguist, bom trabalho. Tendes comida à espera lá dentro. O rapaz seguiu Broichan em silêncio quando este entrou na casa sob os olhares curiosos dos servos e se dirigiu para o salão, onde estavam dois anciãos, Erip e Wid, e alguns cães enormes, perto da lareira. Os animais levantaram os focinhos e rosnaram. O rapaz hesitou, mas não disse nada.

Erip e Wid tinham em frente, sobre uma mesa, um tabuleiro de jogo e algumas peças esculpidas em osso. Os olhos de Bridei foram atraídos pelas sacerdotisas, guerreiros e druidas esculpidos em osso, todas do tamanho de um dedo mindinho. Hesitou. Bem-vindo, rapaz, disse Erip com um sorriso desdentado. Gostas de jogos? Ele acenou afirmativamente. Nesse caso, estás aqui bem, disse Wid, coçando a barba branca. Somos os melhores jogadores de Fortriu. Recantos do Corvo, Parte o Muro, Avançar e Recuar, somos peritos. És parecido com a tua mãe, miúdo. Os olhos azuis do rapaz olharam, inquiridores, para o ancião. Chega, disse Broichan. Anda comigo, rapaz. Tinha de lembrar a Wid e a Erip que a educação do rapaz era da sua exclusiva responsabilidade. A nova vida de Bridei começava a partir dali; o rapaz caminharia sem o fardo de saber quem era. Teriam tempo para isso quando ele crescesse. Teriam uns dez, quinze anos, se os deuses lhes sorrissem. Broichan tinha de transformar a criança num homem, pronto a desempenhar o relevante papel que lhe cabia no futuro de Fortriu. A educação de Bridei tinha de ser perfeita. Na realidade, era uma vantagem ele ser tão novo. Quinze anos seriam à justa». In Juliet Marillier, O Espelho Negro, Crónicas de Bridei, 2005, Editora 11 X 17, 2010, ISBN 978-972-252-138-3.

Cortesia de Editora 11X17/JDACT

JDACT, Juliet Marillier, Literatura, 

domingo, 30 de agosto de 2020

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «A americana abanou a cabeça com solenidade: o piloto não tinha esposa, dissera-o à chegada ao hospital, ao ser submetido a um breve questionário pessoal»

jdact

Paris, 3 de Junho de 1940

«(…) Jean-Luc era atencioso e julgo que naquele dia a minha prima ainda gostava dele, embora não tivessem muitas afinidades. O francês estudava medicina, ela literatura; Jean-Luc odiava mexilhões, Carol adorava-os; o rapaz preferia o teatro, a minha prima, o cinema; ele nunca dançava, ela não perdia uma oportunidade. Avisadamente, jamais haviam dito um ao outro que se amavam. Não sendo uma paixão, eram, no entanto, uma companhia mútua agradável, pelo menos até Junho, mês em que Jean-Luc se juntaria à família em Lyon, enquanto ela permaneceria, feliz, em Paris. Se os alemães deixarem, rematou Carol. Cuidado, não fiques grávida!, alertou Polly. A minha prima preparava-se para a tranquilizar, a mãe ensinara-a antes de morrer e Jean-Luc usava uma protecção de borracha, desagradável, mas útil. Contudo, não teve tempo, pois a americana desatou a relembrar os cinco anos em que tentara engravidar sem sucesso. Não por falta de  tentativas, garantiu, faziam-no três vezes por semana! O problema era o marido, pois a ela vinha-lhe o sangue mensalmente, nunca percebera tal mistério. Devia casar-me outra vez!, exclamou. Ao contrário do que postulava a opinião popular, defendeu que se fazia mais sexo no matrimónio do que fora dele. A força do hábito empurrava os corpos na direcção e com uma regularidade certas. Com o marido era às terças, quintas e sábados, dia em que Polly ficava por cima, a posição em que sentia mais prazer. Só no último ano haviam diminuído o ritmo dos encontros, passando a fazê-lo apenas ao sábado à noite e, mesmo assim, ela precisava já de estar muito bebida para gostar. No hospital, há um inglês que me deixa louca!, informou Polly de rompante. O terceiro sobrevivente que trouxera de Dunquerque, um piloto cujo avião se despenhara na Bélgica semanas antes, mexia-lhe com as entranhas. É careca e lindo. O que ela mais gostava em Rover, nome do aviador, eram as mãos. Ou melhor, a mão esquerda, pois a direita havia sido amputada pelos médicos, tão graves eram os ferimentos. Mas ao safado chega-lhe uma! Tem uns dedos longos, dá vontade de os meter dentro da nossa camisa! Carol riu-se, imaginando o pobre Rover a aturar as visitas daquela desvairada, que se enervava com o inexplicável desinteresse dele. Seguramente o homem avariara a cabeça, pois permanecia melancólico, calado e apático. Nunca sorria a Polly, num desdém masculino que funcionava como uma vitamina afrodisíaca. Ontem quase saltei para cima dele!, confessou a americana. Dito isto, fez uma careta enojada, dizendo que antes teria de afastar um desagradável gato. O inglês trouxe um gato no avião?, surpreendeu-se Carol. Era um felino velho e cego, um cliente antigo e permanente do hospital, que Rover adoptara, dando-lhe um pratinho de leite diário e habituando o animal a trepar para a cama, onde arruinava o ambiente de sedução promovido por Polly. Incomoda-te um gato cego? A outra ignorou a pergunta de Carol e questionou-se filosoficamente: o que há de errado com Rover? O silêncio solitário do inglês, a anemia derrotada que devia morar-lhe no coração, a humilhação dolorosa por ter perdido uma parte útil do corpo, a sensação de impotência por não poder voltar ao combate, ou apenas as saudades da família e dos colegas, nada disso passava pela cabeça de Polly. O que a enervava era um enigma primário: como era possível Rover não a desejar? Talvez seja casado, sugeriu Carol.

A americana abanou a cabeça com solenidade: o piloto não tinha esposa, dissera-o à chegada ao hospital, ao ser submetido a um breve questionário pessoal. Se calhar tem uma namorada em Inglaterra, por quem está apaixonado, adiantou a minha prima, romântica. Irritada, após um gole súbito de whisky, Polly sentenciou: nenhum namoro justifica tanta abstinência! Rover até podia amar outra, mas essa não estava ao pé dele, como ela! Que mal tinha um romance em Paris? Porque era tão desprovido de desejo? Zangada, levantou-se de súbito, agarrou na garrafa pelo gargalo e explodiu: preciso de um homem!, informou Carol de que ia a um night-club e perguntou: posso levar a tua bicicleta? A minha prima empalideceu. Há bombas lá fora... Furibunda, Polly virou-lhe as costas. Nesse caso, vou de ambulância! Aliviada, Carol respirou fundo. Jamais colocaria a Hirondelle nas mãos daquela endiabrada criatura!» In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris, 

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «A americana abanou a cabeça com solenidade: o piloto não tinha esposa, dissera-o à chegada ao hospital, ao ser submetido a um breve questionário pessoal»

jdact

Paris, 3 de Junho de 1940

«(…) Jean-Luc era atencioso e julgo que naquele dia a minha prima ainda gostava dele, embora não tivessem muitas afinidades. O francês estudava medicina, ela literatura; Jean-Luc odiava mexilhões, Carol adorava-os; o rapaz preferia o teatro, a minha prima, o cinema; ele nunca dançava, ela não perdia uma oportunidade. Avisadamente, jamais haviam dito um ao outro que se amavam. Não sendo uma paixão, eram, no entanto, uma companhia mútua agradável, pelo menos até Junho, mês em que Jean-Luc se juntaria à família em Lyon, enquanto ela permaneceria, feliz, em Paris. Se os alemães deixarem, rematou Carol. Cuidado, não fiques grávida!, alertou Polly. A minha prima preparava-se para a tranquilizar, a mãe ensinara-a antes de morrer e Jean-Luc usava uma protecção de borracha, desagradável, mas útil. Contudo, não teve tempo, pois a americana desatou a relembrar os cinco anos em que tentara engravidar sem sucesso. Não por falta de  tentativas, garantiu, faziam-no três vezes por semana! O problema era o marido, pois a ela vinha-lhe o sangue mensalmente, nunca percebera tal mistério. Devia casar-me outra vez!, exclamou. Ao contrário do que postulava a opinião popular, defendeu que se fazia mais sexo no matrimónio do que fora dele. A força do hábito empurrava os corpos na direcção e com uma regularidade certas. Com o marido era às terças, quintas e sábados, dia em que Polly ficava por cima, a posição em que sentia mais prazer. Só no último ano haviam diminuído o ritmo dos encontros, passando a fazê-lo apenas ao sábado à noite e, mesmo assim, ela precisava já de estar muito bebida para gostar. No hospital, há um inglês que me deixa louca!, informou Polly de rompante. O terceiro sobrevivente que trouxera de Dunquerque, um piloto cujo avião se despenhara na Bélgica semanas antes, mexia-lhe com as entranhas. É careca e lindo. O que ela mais gostava em Rover, nome do aviador, eram as mãos. Ou melhor, a mão esquerda, pois a direita havia sido amputada pelos médicos, tão graves eram os ferimentos. Mas ao safado chega-lhe uma! Tem uns dedos longos, dá vontade de os meter dentro da nossa camisa! Carol riu-se, imaginando o pobre Rover a aturar as visitas daquela desvairada, que se enervava com o inexplicável desinteresse dele. Seguramente o homem avariara a cabeça, pois permanecia melancólico, calado e apático. Nunca sorria a Polly, num desdém masculino que funcionava como uma vitamina afrodisíaca. Ontem quase saltei para cima dele!, confessou a americana. Dito isto, fez uma careta enojada, dizendo que antes teria de afastar um desagradável gato. O inglês trouxe um gato no avião?, surpreendeu-se Carol. Era um felino velho e cego, um cliente antigo e permanente do hospital, que Rover adoptara, dando-lhe um pratinho de leite diário e habituando o animal a trepar para a cama, onde arruinava o ambiente de sedução promovido por Polly. Incomoda-te um gato cego? A outra ignorou a pergunta de Carol e questionou-se filosoficamente: o que há de errado com Rover? O silêncio solitário do inglês, a anemia derrotada que devia morar-lhe no coração, a humilhação dolorosa por ter perdido uma parte útil do corpo, a sensação de impotência por não poder voltar ao combate, ou apenas as saudades da família e dos colegas, nada disso passava pela cabeça de Polly. O que a enervava era um enigma primário: como era possível Rover não a desejar? Talvez seja casado, sugeriu Carol.

A americana abanou a cabeça com solenidade: o piloto não tinha esposa, dissera-o à chegada ao hospital, ao ser submetido a um breve questionário pessoal. Se calhar tem uma namorada em Inglaterra, por quem está apaixonado, adiantou a minha prima, romântica. Irritada, após um gole súbito de whisky, Polly sentenciou: nenhum namoro justifica tanta abstinência! Rover até podia amar outra, mas essa não estava ao pé dele, como ela! Que mal tinha um romance em Paris? Porque era tão desprovido de desejo? Zangada, levantou-se de súbito, agarrou na garrafa pelo gargalo e explodiu: preciso de um homem!, informou Carol de que ia a um night-club e perguntou: posso levar a tua bicicleta? A minha prima empalideceu. Há bombas lá fora... Furibunda, Polly virou-lhe as costas. Nesse caso, vou de ambulância! Aliviada, Carol respirou fundo. Jamais colocaria a Hirondelle nas mãos daquela endiabrada criatura!» In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris, 

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «Dentro da cúpula da Igreja, seu tio não desfrutava muito destaque. Essa falta de proeminência não conseguiu impedir a sua próxima escalada»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia

«(…) No círculo mais íntimo da família e do poder, contudo, mesmo como papa continuará até ao fim falando e escrevendo em catalão. Por volta de 1453, o sobrinho do cardeal dedicou-se aos estudos de Direito em Bolonha. Os primeiros traços conhecidos de seu carácter devem ser contemplados com muita cautela. Os humanistas tinham a tendência de reescrever em elegante latim conhecidos lugares-comuns da Antiguidade clássica. E isso se aplicava ainda mais quando se tinha de fazer uma lista com as qualidades de personalidades poderosas e de outras que poderiam vir a sê-lo. Acreditava-se poder distinguir nesses textos contornos de uma autêntica individualidade, mesmo com todas as violações: na ênfase da imponência física, no louvor à rápida faculdade de compreensão e agilidade mental, na capacidade de fazer manobras, assim como no talento de administrar e dominar. Todas essas qualidades deveriam ser amplamente demonstradas, pelo assim descrito, em 36 anos de cardinalato e onze de pontificado. Informações adicionais sobre esses primeiros anos são, no entanto, muito raras. Dentro da cúpula da Igreja, seu tio não desfrutava muito destaque.

Essa falta de proeminência não conseguiu impedir a sua próxima escalada. No conclave, quando as partes em conflito não chegavam a um acordo, entravam em cena os candidatos de conciliação. A idade de Alonso Borja o qualificava, de mais a mais, a esse papel. Afinal, havia outros que também queriam uma parte desse quinhão. Além disso, os pontificados muito longevos provocavam, não raro, graves distúrbios. A distribuição de poder, as influências e as riquezas cristalizavam-se de forma unilateral em benefício dos sobrinhos do papa e seus clientes. Enquanto outros protagonizavam manchetes diplomáticas e culturais, o cardeal de Valência, como era conhecido agora, esperava tranquilamente. No conclave de 1447, pouco sobressaiu. Nesse conclave, para surpresa de todos, o vencedor foi o humanista Tommaso Parentucelli, que adotou o nome de Nicolau V. Durante os oito anos de seu pontificado, a Itália foi palco de profundas transformações políticas. Em 1450, Francesco Sforza, o único arrivista verdadeiro entre os governantes seculares da península, ascendeu ao trono ducal de Milão. Longas negociações com as principais famílias da aristocracia antecederam a disputa pelo trono, que, após a extinção dos Visconti, curiosamente favoreciam o mais fraco entre muitos candidatos. Seguindo essa linha, o domínio da nova dinastia permaneceu fora de perigo enquanto estiveram conscientes dos pactos assumidos com a sua elite, ou seja, enquanto respeitaram ou ampliaram seus privilégios e agiram com a máxima cautela em assuntos relacionados à política externa.

Além do mais, Bórgia e Sforza eram velhos conhecidos. O novo duque já tinha dado provas das suas aptidões para exercer funções mais elevadas, quando foi líder de um exército mercenário durante a tortuosa luta pelo trono napolitano, da qual Afonso Aragão saiu vencedor. Em horizontes longínquos, foi traçado um cenário de três diferentes ângulos que revelava grande tensão: os Sforza e os Aragão, primeiramente rivais, depois aliados por muito tempo e, finalmente, inimigos mortais. Aliado a isso, os papas dos Bórgia tinham como objectivo tirar proveito dessa rivalidade para consolidar o seu próprio domínio. No final das contas, Alexandre VI contribuirá de forma significativa para que uma dinastia permaneça por muito tempo no poder e para que a outra lá fique por mais de uma década. Em meados do século XV, eventos ocorridos fora da península foram cruciais para a Itália. O fim da Guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, teve como consequência a rápida consolidação da monarquia francesa. Sob a forma de influência de carácter diplomático, essa revitalização da monarquia tornou-se cada vez mais perceptível entre os Alpes e o Monte Etna já a partir de 1460». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

 

Cortesia EEuropa/JDACT

 

JDACT, Volker Reinhardt, Escrita, Vaticano,

Alexandre VI. Volker Reinhardt. «A vocação ou aptidão pessoal não desempenhavam um papel importante para se ingressar no sacerdócio. Somente com as reformas do Concilio de Trento (1545-1563), essa disposição individual passou a ser normativa»

Cortesia de wikipedia e jdact

De Xátiva a Roma. 1378-1458. As Origens dos Bórgia

«(…) É chegado, assim, o momento do penúltimo salto na trajectória do prelado político. Como homem de seu rei, recebeu o chapéu eclesiástico vermelho em 1444. Afonso não teve sequer de insistir excessivamente com o papa. O rigoroso jurista espanhol era muito benquisto às margens do Tibre. Idoso, sem raízes dentro do aparato curial e não muito rico, ele não representava uma ameaça para ninguém. No entanto, aquele que reinava sobre Nápoles e Sicília contava agora com um activo defensor dos seus interesses dentro do Senado da Igreja. Da sua residência, nos arredores da sua igreja titular Santi Quattro Coronati, próximo a Latrão, Alonso de Borja nunca perdeu de vista as obrigações de cliente perante seu patrão, continuando a trabalhar incansavelmente para seu senhor, fosse na concessão de benefícios, fosse em questões eclesiásticas.

Essa lealdade cega era apenas um lado da moeda. Como um dos vinte cardeais, o homem de Xátiva pertencia agora à elite de liderança exclusiva da Igreja. E essa cor púrpura brilhou muito além das dependências da cúria. As cabeças coroadas do mundo dirigiam-se a um cardeal como meu primo. Isso porque ele era um príncipe da Igreja, usufruía de poder, mas não de soberania. Se dependesse dos próprios cardeais, isso era algo que estaria prestes a mudar. Como grupo, eles estavam tentando garantir a autonomia nas tomadas de decisão da Igreja, pressionando o papa a ser o órgão executivo de sua vontade. Mas o papa, por sua própria natureza, não estava de acordo e reagiu contrariamente. Aproximadamente na metade do século XV, essa questão relacionada ao poder dentro da cúria ainda não estava definitivamente esclarecida.

Para o novo cardeal, no entanto, era o momento de expressar o seu agradecimento. Seguida de Deus e do rei, a próxima na fila era a sua família. E, com ela, o círculo de apoio formado por amigos, ou seja, seus valiosos aliados. Pairavam sobre aquele que atribuía o sucesso apenas a si mesmo fortes suspeitas do grave pecado do orgulho e da soberba, que já fora responsável pela queda de Lúcifer do céu para o inferno. A virtude da piedade, a submissão reverente aos costumes dos antepassados e o perfeito elo com sua devoção ajudavam contra os impulsos de seu dilatado ego. Concretamente, obrigava-se que parentes e amigos, e justamente nessa ordem, recebessem as bênçãos da elevação. Assim sendo, dois sobrinhos de Alonso ocupavam o topo dessa hierarquia. Ambos eram fruto do casamento de sua irmã Isabel com dom Jofre de Borja, um descendente do ramo principal da família: Rodrigo, o futuro Alexandre VI, bem como seu irmão Pedro Luís. Rodrigo foi designado, ainda muito jovem, a seguir a carreira eclesiástica. Esse era o plano de carreira típico daquela época. Com um membro da família sentado na cadeira episcopal de Valência, seria uma falha injustificável abrir mão desse privilégio. As posições de liderança dentro da Igreja eram herdadas geralmente de acordo com o celibato, não de pai para filho, mas de tio para sobrinho. Regulamentada por regras minuciosamente elaboradas, a prática da concessão de benefícios oferecia grandes oportunidades para isso. Embora o papado tenha sofrido muitas perdas durante o cisma, muitos dos prestimónios mais lucrativos continuaram a ser concedidos em Roma, ainda que, muitas vezes, em conjunto com os governantes seculares. A vocação ou aptidão pessoal não desempenhavam um papel importante para se ingressar no sacerdócio. Somente com as reformas do Concilio de Trento (1545-1563), essa disposição individual passou a ser normativa. Para a profissão do jovem Rodrigo Borja, a elevação de Alonso foi fundamental. Carreiras como a do grande jurista formavam o elemento móvel de uma sociedade que vinha se consolidando de forma considerável, particularmente na Itália. Cada prelado que conseguisse chegar à cúpula da Igreja levava prontamente consigo a sua família, munido do afã indomável de lá se estabelecer por tempo indeterminado. Esse mecanismo frustrava não apenas os romanos natos, mas também escasseava os recursos para os futuros jovens promissores. E, com isso, anunciavam-se graves conflitos na distribuição de recursos. Como muitos fizeram antes e depois dele, o cardeal de Xátiva também tomou medidas de precaução para garantir a futura posição dos seus. Ele deve ter levado Rodrigo para Roma por volta de 1449. Naquela época, seu protegido, que curiosamente após a morte do pai tinha-se mudado com a mãe para o desocupado palácio episcopal de Valência, já estava bem arranjado, com cargos dentro da Igreja e bons vencimentos. Um cónego em Xátiva, por exemplo, gozava de rendimentos consideráveis. Era mérito do seu ilustre filho cardeal Alonso que houvesse cónegos na pequena cidade. Alonso tinha promovido a paróquia local para colegiado, isso também é piedade. Para além de uma longa missão diplomática ao serviço do papado, Rodrigo Borja, cujo nome está mudando gradualmente para a forma italiana Borgia, não deverá mais abandonar a Itália». In Volker Reinhardt, Alexandre VI, Bórgia, o Papa Sinistro, 2011, Editora Europa, 2012, ISBN 978-857-960-127-9

 

Cortesia EEuropa/JDACT

 

JDACT, Volker Reinhardt, Escrita, Vaticano, 

sábado, 29 de agosto de 2020

O Legado dos Templários. Steve Berry. «Lembra-te de tudo o que te ensinei. A voz rouca cedeu à doença, mas existia ainda firmeza no seu tom. Não sei ao certo se quero ser grão-mestre…»

jdact

Abbaye des Fontaines. Pirinéus Franceses. 17h00

«(…) Quem me dera sentir o cheiro da água, murmurou o mestre. O senescal olhou em direcção à janela. As vidraças do século XVI encontravam-se abertas e permitiam que o aroma doce das pedras molhadas e da vegetação verde enchesse o quarto. Ao longe, a água bramia. O seu quarto tem uma vista magnífica. Foi uma das razões que me levou a querer ser grão-mestre. O senescal sorriu, sabendo que o mestre estava apenas a brincar. Lera as Crónicas e sabia que o seu mentor ascendera àquele lugar por ser capaz de se adaptar a cada viragem do destino com a mestria de um génio. A sua liderança caracterizara-se pela paz, mas tudo isso iria mudar em breve. Devo rezar pela sua alma, disse o senescal. Há tempo para isso mais tarde. É preciso que te prepares. Para quê? Para o conclave. Reúne os votos. Prepara-te. Não dês tempo aos teus inimigos para se organizarem. Lembra-te de tudo o que te ensinei. A voz rouca cedeu à doença, mas existia ainda firmeza no seu tom. Não sei ao certo se quero ser grão-mestre. Queres. O amigo conhecia-o bem. A modéstia exigia que recusasse o manto, mas ele desejava aquela posição mais do que qualquer outra coisa na vida. Sentiu a mão do mestre a tremer. E foram precisos alguns minutos para que ele recuperasse. Já preparei a mensagem. Está ali, sobre a mesa. Também estava a par que seria responsabilidade do próximo mestre estudar aquele testamento. O dever tem de ser cumprido, afirmou o mestre. Tal como tem acontecido desde o Início.

O senescal não queria ouvir falar do dever. Estava mais preocupado com os sentimentos. Olhou em redor do quarto, mobilado apenas com uma cama, um genuflexório virado para um crucifixo de madeira, três cadeiras com uma almofada bordada, uma escrivaninha e duas estátuas antigas de mármore colocadas em nichos na parede. Tempos houvera em que aquele quarto estivera repleto de peles espanholas, porcelanas de Delft, mobiliário inglês. Contudo, a audácia há muito que fora expurgada do carácter da Ordem. Assim como do seu.

O mestre estava com dificuldade em respirar. Observou o homem ali deitado num torpor febril e doente. O grão-mestre recuperou o fôlego, pestanejou umas quantas vezes e depois disse: ainda não, meu amigo. Em breve.

Malone esperou até um pouco depois da hora marcada para o início do leilão e só nessa altura entrou. Estava familiarizado com os procedimentos e sabia que as licitações não começariam antes das dezoito e vinte, pois havia ainda assuntos relativos aos registos de compradores e acordos de vendedores que precisavam de ser verificados antes de o dinheiro começar a mudar de mãos. Roskilde era uma cidade antiga aninhada ao lado de um estreito fiorde de água salgada. Fundada pelos Vikingues, fora a capital da Dinamarca até ao século XV e continuava envolta num ambiente régio. O leilão ia ter lugar na baixa, perto da Domkirke, a catedral, num edifício à saída da Skomagergade, uma rua outrora dominada por sapateiros. Na Dinamarca, a venda de livros era uma forma de arte e havia um profundo interesse nacional pela palavra escrita, que Malone como bibliófilo muito apreciava. Os livros haviam começado por ser apenas um passatempo, uma distracção das pressões da sua profissão arriscada, mas agora eram a sua vida. Ao ver Peter Hansen e Stephanie na fila da frente, deixou-se ficar para o fundo, atrás de um dos pilares que suportava o tecto abobadado. Não fazia tenções de licitar, por isso pouco importava se o leiloeiro o via ou não. Os livros iam e vinham a troco de grandes quantias de dinheiro. Reparou que Peter Hansen esticou o pescoço quando o livro seguinte foi apresentado.

Pierres Gravées du Languedoc, de Eugène Stüblein. Copyright de 1887, anunciou o leiloeiro. Uma história local, bastante comum naquela época. Foram impressas apenas algumas cópias. Esta faz parte de um lote que adquirimos recentemente. É um livro muito bonito, capa em pele, sem defeitos e com gravuras extraordinárias, uma delas reproduzida no catálogo. Não é nosso hábito fazê-lo, mas este volume é encantador e, por isso, pensámos que seria interessante mostrá-la. Podem começar a licitar, se fazem favor. Seguiram-se três ofertas, sendo a última de quatrocentas coroas. Malone fez as contas. Dava sessenta e quatro dólares. Hansen acenou para oitocentas. Nenhum dos outros licitadores avançou mais propostas até que um dos funcionários destacados para atender as chamadas telefónicas daqueles que não podiam estar presentes anunciou uma oferta de mil coroas. Hansen parecia preocupado com o desafio inesperado, em especial vindo de um licitador anónimo, e subiu a sua oferta para mil e cinquenta coroas». In Steve Berry, O Legado dos Templários, 2006, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-808-9.

Cortesia PdomQuixote/JDACT

JDACT, Literatura, Steve Berry, Templários,

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

O Último Mistério. Lynn Sholes e Joe Moore. «Já devia estar tudo pronto para a transmissão ao vivo via satélite da sua próxima reportagem revolucionária»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Entrando no estacionamento cujo chão era coberto de pedregulhos da rústica atracção turística, Cotten Stone sentiu aquela antiga e conhecida pontada de excitação. Ela havia produzido manchetes importantes ao longo dos dois últimos anos: ao encontrar o Santo Graal, duas vezes; ao persuadir o Vaticano a abrir os seus cofres e permitir que os judeus recuperassem a menorá sagrada do Segundo Templo, levada para Roma por Tito em 70 d.C.; ao cobrir o impressionante achado dos rolos de pergaminhos mais antigos em cavernas próximas ao Mar Morto; e ao anunciar a descoberta das trinta peças de prata que Judas Iscariotes recebera em pagamento pela traição a Cristo. Mas esta agora seria a coroação das suas conquistas. Quando se tratava de sensacionalismo religioso, Cotten Stone ditava as regras. E agora ela tinha a oportunidade de desmascarar, sozinha, os fundamentos da teoria científica da evolução, ali mesmo naquela tarde quente, numa faixa poeirenta às margens de uma rodovia texana. Ela estava nas alturas, sentindo a adrenalina correr pelo rosto e pela garganta. Cotten parou ao lado do veículo de geração e transmissão de vídeo à distância da NBC-5 de Dallas-Fort Worth, estacionada na frente do estabelecimento de Gilley. Já devia estar tudo pronto para a transmissão ao vivo via satélite da sua próxima reportagem revolucionária. Em instantes, ela revelaria ao mundo um osso de dinossauro com uma ponta de lança enterrada, a prova de que o homem tinha vivido na época dos dinossauros. Quando saiu do carro, Cotten voltou a observar o céu nublado do Texas. Controlem-se, pensou. Cotten Stone está prestes a abalar o noticiário nocturno outra vez.

Apenas uma semana depois do que deveria ter sido o melhor momento da sua vida, Cotten Stone estava outra vez diante das câmeras. Mas não havia o brilho de excitação no seu rosto, nem qualquer animação na sua voz. Em vez disso, seus olhos estavam pesadamente maquiados, numa tentativa de disfarçar as pálpebras inchadas. O corpo todo parecia encolhido, recurvado e, quando ela falou, a voz saiu acanhada. Gostaria de me desculpar com todos aqueles que se sentiram traídos ou ofendidos por mim, declarou Cotten, evitando o contacto visual com a câmera. Ela olhava para baixo, para os apontamentos que tinha preparado, sentindo os olhares de toda a equipa do estúdio sobre ela; o desprezo que eles sentiam era quase palpável. Não era a minha intenção mentir ou conspirar para enganar os espectadores da National Broadcasting Company ou as suas afiliadas. Nunca tive a intenção de decepcionar ninguém. Fui acusada de ignorar as evidências que indicavam aquilo que agora está sendo chamado de fóssil inventado, uma mentira premeditada. Nego terminantemente que tivesse algum conhecimento anterior de que se tratava de um artefacto falso e nunca pretendi iludir nem confundir ninguém. Se fui motivo de embaraço para algum grupo ou pessoa, sinto profundamente que isso tenha acontecido. Espero que todos possam perdoar-me». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Último Mistério, 2006, Publicações Europa-América, 2007, ISBN 978-972-105-782-1.

Cortesia de PEuropaAmérica/JDACT

JDACT, Lynn Sholes, Joe Moore, Literatura, Mistério, 

Gritos do Passado. Camila Läkberg. «Claro que isso depende do local onde eles estiveram. Podem ter sido expostos às intempéries, ou podem ter ficado protegidos. Espero que o legista consiga dar uma estimativa da idade deles»

Cortesia de wikipedia e jdact

Verão de 1979

«(…) De volta à delegacia, em Tanumshede, Mellberg mergulhou num estado meditativo profundo, nada característico dele. Patrik também não falava muito, sentado diante dele no refeitório e ponderando sobre os eventos da manhã. Na verdade, fazia calor demais para tomar café, mas ele precisava de algo estimulante, e um drinque estava fora de questão. Sem perceber, ambos abanavam as suas camisas para se refrescar. Já fazia duas semanas que o ar-condicionado estava avariado, e ainda não tinham conseguido que alguém o consertasse. De manhã, a temperatura em geral era tolerável, mas por volta do meio-dia o calor alcançava níveis insuportáveis. Que diabos significa tudo isso?, disse Mellberg, enquanto coçava com cuidado a massa de cabelo no alto da cabeça, penteada de forma a esconder a calvície. Para ser sincero, não tenho a menor ideia. Um corpo de mulher foi achado sobre dois esqueletos. Se não tivesse ocorrido de facto um assassinato, eu pensaria em alguma brincadeira, esqueletos roubados de um laboratório de biologia ou algo assim. Mas não há como ignorar que a mulher foi morta. E também ouvi um comentário de um dos peritos, que disse que os ossos não pareciam novos. Claro que isso depende do local onde eles estiveram. Podem ter sido expostos às intempéries, ou podem ter ficado protegidos. Espero que o legista consiga dar uma estimativa da idade deles.

Certo, quando acha que receberemos um primeiro relatório dele? Mellberg franziu o cenho, em expectativa. Provavelmente, teremos um relatório preliminar hoje, e então ele vai levar mais uns dois dias para examinar tudo mais detalhadamente. Assim, por enquanto, vamos ter que trabalhar com a pouca evidência que temos. Por onde anda o resto do pessoal? Mellberg suspirou. Gosta está de folga hoje. Um maldito campeonato de golfe ou algo assim. Ernst e Martin estão fora, numa investigação. Annika está em alguma ilha grega. Ela deve ter pensado que ia chover durante todo o Verão outra vez. Coitadinha! Não deve ser divertido sair da Suécia justo agora que está fazendo esse tempo maravilhoso. Patrik lançou a Mellberg outro olhar surpreso e ficou espantado com a manifestação tão incomum de compaixão. Algo estranho estava acontecendo com certeza. Mas ele não podia perder tempo preocupando-se com isso agora. Tinham coisas mais importantes em que pensar. Sei que está de férias pelo resto da semana, mas você se importaria de assumir o caso?, perguntou Mellberg. Ernst não tem imaginação suficiente, e Martin é inexperiente demais para conduzir uma investigação, de forma que realmente precisamos da sua ajuda.

O pedido agradava tanto à vaidade de Patrik que ele se viu aceitando no acto. É claro que iria enfrentar o inferno com Erica, mas ele se consolou com o facto de que não demoraria mais do que quinze minutos para chegar em casa, se a esposa precisasse dele com urgência. Além disso, com aquele calor, um estava dando nos nervos do outro, e talvez fosse uma boa ideia ele ficar fora. Primeiro, quero descobrir se alguma mulher foi dada como desaparecida, disse Patrik. Devemos investigar uma área extensa, vamos dizer de Strömstad até Gotemburgo. Vou pedir a Martin ou a Ernst para fazer isso. Acho que os ouvi chegar. Muito bom, é uma óptima ideia. Está no caminho certo, continue assim. Mellberg ergueu-se da mesa e bateu cordialmente no ombro de Patrik. Esse percebeu que, como sempre, faria todo o trabalho, e Mellberg mais uma vez receberia todo o crédito. Mas ele já não se aborrecia com isso. Não valia a pena. Com um suspiro, pôs as duas xícaras na máquina de lavar louça. Ele não precisaria usar filtro solar hoje.

Muito bem, todos em pé! Acham que isso aqui é uma maldita pensão onde podem passar o dia todo largados? A voz atravessou camadas espessas de nevoeiro e ecoou de forma dolorosa contra as suas têmporas. Johann abriu um olho, cauteloso, fechando-o de novo no instante em que viu o brilho ofuscante do sol de Verão. Que diabos… Robert, seu irmão, um ano mais velho, virou-se na cama e cobriu a cabeça com o travesseiro. Esse foi arrancado de repente das suas mãos, e ele sentou-se reclamando. Nunca posso dormir um pouco neste lugar? Vocês são dois preguiçosos que acordam tarde todo dia. É quase meio-dia. Se não ficassem vadiando até tarde toda a noite, fazendo sabe Deus o quê, talvez não tivessem que passar metade do dia dormindo. Seria óptimo se me dessem uma ajudinha. Vocês moram aqui de graça e também comem de graça e são dois homens feitos. Não acho que seja demais pedir que deem uma mãozinha a sua pobre mãe. Solveig Hult estava em pé, de braços cruzados. Era uma obesa mórbida, com a palidez de alguém que nunca sai de casa. Seu cabelo estava imundo, emoldurando-lhe a face com cachos escuros desgrenhados. Vocês têm quase trinta e ainda vivem à custa da sua mãe. É, vocês são mesmo homens de verdade. E como sempre têm dinheiro para sair se divertindo toda santa noite, posso saber? Não trabalham, e nunca vejo vocês ajudando em nada com as despesas da casa. Só posso dizer que, se o pai de vocês ainda fosse vivo, ele colocaria um basta nesse comportamento. Já tiveram alguma notícia da Central de Empregos? Era para terem ido lá na semana passada!» In Camila Läkberg, Gritos do Passado, 2004, Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».

Cortesia de EdomQuixote/JDACT

JDACT, Camila Läkberg, Literatura,

Os Sete Pilares da Sabedoria. T.E. Lawrence. «Os povos do deserto revelavam-se tão pouco estáticos como os das montanhas. A vida económica do deserto baseava-se no fornecimento de camelos, e estes eram mais bem alimentados e criados nas pastagens…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As montanhas do ocidente e as planícies do oriente foram sempre as partes mais populosas e mais activas da Arábia. Particularmente no ocidente, as montanhas da Síria, da Palestina, do Hedjaz e do Iémen, de quando em quando entravam na corrente da vida europeia. Etnicamente, estas montanhas férteis e saudáveis pertenciam à Europa, não à Ásia, visto como os árabes olhavam sempre para o Mediterrâneo, e não para o oceano Índico, em virtude das suas simpatias culturais, dos seus empreendimentos, e, em particular, da sua expansão; o problema da emigração era a força maior e mais complexa, na Arábia, empolgando-a de maneira geral, embora variasse de intensidade nos diversos distritos árabes. Ao norte (Síria), a taxa de nascimentos mostrava-se baixa, nas cidades, e a de mortalidade muito alta, em virtude das condições insalubres e da vida agitada vivida pela maioria. Consequentemente, o excesso de agricultores encontrava espaço nas cidades, e ali era absorvido. No Líbano, onde as condições higiénicas haviam sido melhoradas, verificou-se grande êxodo de jovens, a caminho da América, êxodo que foi se tornando maior de ano para ano, e ameaçando (pela primeira vez desde os tempos dos gregos) modificar o aspecto de todo um distrito. No Iémen, a solução foi diferente. Não havia comércio exterior, nem um conjunto de indústrias que acumulassem populações em lugares insalubres. As cidades eram apenas mercados, limpas e simples como aldeias comuns. Portanto, a população aumentava devagar; o nível de vida baixava em demasia; e sentia-se, em geral, a congestão do número. Os habitantes não podiam emigrar para o outro lado dos mares; o Sudão afigurava-se terra ainda pior do que a Arábia, e as poucas tribos que se aventuravam por ali viam-se compelidas a modificar profundamente o seu teor de vida e a sua cultura semítica, para poderem existir. Não podiam tomar o caminho do norte, ao longo das montanhas; estas eram barradas pela cidade santa de Meca, e pelo seu porto, Jidá: este não passava de zona estrangeira, continuamente reforçada por forasteiros vindos da Índia, de Java, de Bokhara e da África, fortemente dotadas de vitalidade, violentamente hostil à consciência semítica, e mantida, apesar dos problemas económicos, da geografia e do clima, pelo factor artificial de uma religião mundial. A congestão do Iémen, portanto, tornando-se extrema, encontrou o seu único alívio no oriente, forçando os mais fracos agregados das fronteiras a descer pelas encostas das montanhas, ao longo do Widian, distrito semi-arruinado dos grandes vales dotados de água de Bisha, Dawasir, Ranya e Taraba, que corriam em direcção aos desertos de Nejd. Estas tribos mais fracas tiveram de trocar, continuamente, boas primaveras e palmares férteis por primaveras menos felizes e por palmares menos fecundos, até que, afinal, chegaram a uma área onde se tornara impossível toda vida agrícola regular. Começaram, então, a substituir a precária lavoura pela criação de carneiros e de camelos, e, com o correr do tempo, passaram a depender cada vez mais dos seus rebanhos para subsistir.

Finalmente, sob um último impulso da poderosa população que lhes ia no encalço, os povos da fronteira (já agora inteiramente pastoris) foram repelidos para longe, para fora dos oásis extremos e enlouquecedores, passando para o deserto pleno, e vivendo a vida dos nómades. Este processo, que pode ser contemplado hoje, através de clãs e de tribos, a cujas marchas deveria dar-se um nome exacto, fixando-se-lhes também as datas, vem se realizando desde os primeiros dias do povoamento do Iémen. Os Widians, abaixo de Meca e de Taif, estão repletos de memórias e de nomes de lugares de meia centena de tribos, que de lá saíram, e que podem ser agora encontrados em Nejd, em Djebel Shammar, no Hamad, e mesmo nas fronteiras da Síria e da Mesopotâmia. Esta foi a fonte da emigração, a fábrica de nómadas, a origem da torrente dos caminheiros do deserto.

Os povos do deserto revelavam-se tão pouco estáticos como os das montanhas. A vida económica do deserto baseava-se no fornecimento de camelos, e estes eram mais bem alimentados e criados nas pastagens dos rigorosos planaltos, em virtude dos espinheiros e espicanardos altamente nutritivos. Os beduínos viviam desta actividade; e isto, por sua vez, amoldou-lhes a maneira de existir, aumentou as áreas das tribos, mantendo os clãs na rotina das pastagens de Primavera, de Verão e de Inverno, no ritmo em que os animais devoravam os escassos brotos de cada estação. Os mercados de camelos na Síria, na Mesopotâmia e no Egipto determinaram a quantidade de população que o deserto poderia comportar, regulamentando estritamente o seu padrão de vida». In T.E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, 1922, 1926, Publicações Europa-América, 2004, ISBN 978-972-100-483-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

JDACT, T.E. Lawrence, Literatura, Conhecimento, África,

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «Mary é importante, explicou. Safa os nossos pilotos de caírem nas mãos dos boches. Se começa a dormir com todos, isso vai criar problemas…»

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Lisboa, 22 de Junho de 1995

Mary

«(…) Caramba, 50 anos depois, deitado numa cama do Hotel da Lapa, ainda me sinto excitado com aquela primeira conversa louca que tive com Mary. A nossa vida é feita de memórias, é isso que conta no fim. Obviamente, não demorámos muito tempo a cair nos braços um do outro. Ela era uma mulher necessitada de homem, e eu um homem necessitado de mulher. No entanto, tenho uma recordação difusa dessa primeira noite. Aconteceu-me várias vezes isso na primeira noite com uma mulher. Estamos demasiado excitados para reparar nos pormenores. Só recordo de que foi a primeira vez que lhe vi as ligas e eram pretas. Do que me lembro melhor foi do regresso do medo. Depois do amor e do sexo, Mary ficava sombria, o seu mundo interior fustigado por ventos mais fortes do que os do ciclone, que fazia bater as portadas contra as paredes da casa. Regressava a Londres e às bombas. Agarrava-se a mim e dizia: Jack Gil, tu não sabes o que é uma bomba a cair e nós a cair com ela...

Observo um pombo enquanto ele voa, a princípio na direcção da Rua Augusta, depois inclinando-se para a sua esquerda, como se fosse visitar a Pastelaria Suíça, aonde não chega, pois voltou a mudar de ideias e agora plana para o centro da Praça do Rossio. Irá pousar junto dos outros pombos, na estátua de dom Pedro? Não é isso que faz e prossegue com nova guinada, ganhando altitude, a caminho do Teatro D. Maria. O Rossio de 1995 é semelhante ao que conheci. No chão há alcatrão em vez de empedrado e há traços pintados a branco. Circulam autocarros laranjas, feios táxis cor de creme, e muitos mais carros do que no meu tempo. Mas a praça continua soalheira, alegre, barulhenta, com pombos e gente sempre agitada. Fixo a estátua de dom Pedro, ao lado da qual, há 50 anos, o meu amigo Michael soltou as suas máximas sobre Mary e o coronel James Bowles. O marido devia tomar conta dela. É isso que eu penso, declarou. À nossa volta, centenas de pessoas enchiam a praça. A maioria, eram estrangeiros e quase não se ouvia falar português, mas sim francês, inglês, alemão, polaco ou holandês. Desde Junho de 40, após a derrota da França pela blitzkrieg nazi, Portugal fora invadido por refugiados, que passavam os seus dias ociosos entre a Baixa e a Avenida da Liberdade. Arrastavam malas, sacos cheios de roupas, crianças. Instalavam-se nas pensões e nos hotéis, sentavam-se nos cafés, ou formavam filas, à porta da estação dos Correios, das companhias de navegação, ou dos consulados britânico ou americano. À espera de um visto e de um bilhete de barco que os colocassem a caminho do Brasil ou da América. A Mary anda descontrolada. E isso é perigoso. Percebes, Jack? Parei, no meio da praça: porquê?

O meu amigo olhou-me com curiosidade. Michael era inglês, mas também nascera na África do Sul. Não em Cape Town, como eu, mas em Joanesburgo. Por lá crescera, até vir para Portugal. Há cinco anos, mais ou menos na mesma altura em que eu viera para Lisboa, ele tinha sido admitido no Foreign Office, e fora colocado três anos em Free Town. Acho que, desses tempos difíceis que passou na Libéria, lhe ficara uma dureza de carácter que jamais o abandonou. Deixara também crescer uma barba rala, cujo tom dourado lhe dava um ar de actor de cinema. Tinha imenso sucesso com as mulheres e, ao olhar para os seus olhos azuis e vivos, e para a sua tez queimada pelo sol, não me era difícil perceber porquê. Mary é importante, explicou. Safa os nossos pilotos de caírem nas mãos dos boches. Se começa a dormir com todos, isso vai criar problemas. Surpreendido, perguntei: a dormir com todos? Michael sorriu, condescendente: Jack, não me digas que achas que és o primeiro? Bati as pestanas, confundido. Ele fez um ar trocista: Jack, por favor. Até o David já dormiu com a Mary! O David? David era um dos adidos económicos da Embaixada inglesa. Apesar de bom tipo e simpático, era um pouco efeminado para o meu gosto, e duvidava das suas inclinações. Sim, Jack. O David, eu, o Barney da Sandeman, cada vez que vai ao Porto, e sei lá mais quantos. O coronel sai da cama por um lado e entra logo um homem do outro!» In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Guerra Mundial, Literatura, Conhecimento,

Contos Proibidos. Rui Mateus. «O chamado caso do fax de Macau ou caso Ernaudio dar-me-ia o último argumento de peso para escrever este livro. A propósito de um conflito…»

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«(…) A Revolução Portuguesa tomara-se um marco essencial para a compreensão dos grandes acontecimentos políticos mundiais da segunda metade do século XX, se bem que os políticos portugueses, que pouco tinham feito para que o 25 de Abril acontecesse, também não a soubessem promover, nem conseguissem dela tirar os louros que, por direito próprio, Portugal merecia. A transformação pacífica de Portugal num país livre e democrático foi um acontecimento não só inédito como exemplar, que viria a contribuir de forma absolutamente decisiva para a falência de inúmeros regimes totalitários em África, na América Latina e no próprio Leste Europeu e para um desanuviamento da tensão nas relações internacionais. A descolonização total do Continente Africano e os processos de democratização na Península Ibérica e na América Latina seriam o primeiro resultado da Revolução de Abril. O fim do apartheid e das ditaduras comunistas no Leste Europeu, pela via do diálogo e do pluripartidarismo, seriam também consequência da vitória das forças democráticas, primeiro em Portugal, depois, como reflexo dessa vitória, encontrariam força suficiente no seio da Internacional Socialista e no seio da NATO para rejeitar soluções de submissão unilateral nos chamados diálogos Leste Oeste e Norte Sul. Na base da força moral das forças democráticas, perante os graves conflitos entre o Leste e o Oeste e na escolha da via para a libertação dos Povos, nos anos 80, estaria sempre presente o exemplo português a que André Malraux chamaria a primeira vitória dos mencheviques sobre os bolcheviques. Bastaria referir, a este propósito, a situação de ruptura a que quase se chegou no seio da NATO por causa do regime sandinista na Nicarágua, sobre as propostas conducentes a um processo de desarmamento unilateral na Europa Ocidental e sobre um eventual apoio europeu a formas de luta armada a conduzir por países da Linha da Frente na África Austral, como forma de pôr fim ao regime do apartheid na África do Sul. Seria o exemplo da moderação da vitória dos mencheviques em Portugal que, na maior parte dos casos, mesmo quando a revolução portuguesa já parecia esquecida, cimentaria as decisões de bom senso que acabariam por prevalecer e moderaria os ímpetos revanchistas dos republicanos norte-americanos e os ataques de pacifismo serôdio de alguns socialistas europeus. Portugal esteve no epicentro de uma grande ameaça à paz tendo a solidariedade internacional, que nos faltou durante tantos anos, finalmente funcionado. Entre as várias opções que se colocariam aos capitães de Abril e as várias receitas preconizadas para Portugal prevaleceria o bom senso. Mas os partidos políticos e seus principais dirigentes rapidamente desperdiçariam este enorme património, em lutas intestinas e com vaidades provincianas. Hoje, visto de fora para dentro, Portugal regressou ao seu estatuto de país insignificante e receptor. Não foram conseguidos os grandes objectivos da Revolução de Abril e o País encontra-se entre a Europa e a mediocridade. Parece que o povo português não consegue libertar-se do fatalismo da I República. Este meu livro de memórias, assim o espero, é também uma contribuição contra esse fatalismo.

O chamado caso do fax de Macau ou caso Ernaudio dar-me-ia o último argumento de peso para escrever este livro. A propósito de um conflito, em nada diferente dos conflitos que devassam o interior dos partidos políticos portugueses e que se prendem com situações de poder; a propósito de um financiamento político relativamente insignificante e em nada, a não ser no montante, diferente dos que têm sido feitos ao longo dos últimos vinte anos a partidos políticos e organizações afins, confundiu-se a árvore com a floresta e iniciou-se a investigação à corrupção em Portugal de tal forma que, ao contrário do que tem acontecido noutros países europeus, se inviabilizaria o conhecimento da verdade e, como tal, o combate à corrupção. Em vez de se optar por um esclarecimento idóneo e completo, a que os Portugueses têm direito, sobre o estado da Nação em matéria de tráfico de influências e de corrupção, cortando o mal pela raiz ou, caso se verificasse que a verdade poderia ser fatal, a Assembleia da República em acto público entendesse fazer um acto de contrição para bem da democracia, criando moratórias e regras novas, o Ministério Público parece ter assumido a responsabilidade de definir o interesse nacional. Produzindo uma acusação sem provas numa total inversão de valores e, mesmo admitindo a convicção do investigador em relação a um crime que não existiu, ignorando a máxima de Séneca: quem, podendo, não manda que o delito se não faça, manda que se faça.

Não há Democracia sem a participação dos cidadãos na vida do seu país. Escolheu-se definir, em Portugal, que o enfâse dessa participação se faça através de partidos políticos. Mas faltam ainda definir regras estritas sobre a democracia interna nos partidos que os impossibilite de se transformarem, como tem vindo a acontecer em Portugal, em aparelhos burocráticos fechados que impedem essa mesma participação». In Rui Mateus, Contos Proibidos, 1996, Publicações Dom Quixote, 1996, ISBN 972-201-316-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

JDACT, Rui Mateus, Conhecimento, Política, 

Contos Proibidos. Rui Mateus. «Na Áustria, com Bruno Kreisky, na Holanda, com Joop den Uyl, na Bélgica e até na Itália, graças à ameaça do P.C. de Enrico Berlinguer, emergem igualmente partidos sociais-democratas…»

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«(…) A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte, o lançamento dos alicerces da União Europeia não viabilizariam, contudo, o acesso dos países do Sul ao fenómeno de desenvolvimento dos seus vizinhos mais a norte e, até meados dos anos 70, a Europa viveu num clima de completa desunião. Entre democracias mais ou menos formais no Norte e Centro, ditaduras medíocres e subservientes de inspiração cristã na Península Ibérica, uma ditadura militar com reminiscências pan-arábicas na Grécia e uma imensidão de regimes comunistas totalitários e despóticos, proclamados pela via revolucionária em nome da classe operária, a Leste. O início da luta dos Movimentos de Libertação contra o colonialismo português na Guiné, em Moçambique e em Angola, empurrados pela miopia e desinteresse ocidental para os braços da União Soviética, dariam lugar ao chamado Movimento dos Capitães que a 25 de Abril derrubaria, para surpresa de todos, dentro e fora de Portugal, a ditadura iniciada com o Estado Novo, em 1933, por António Oliveira Salazar. Este levantamento pacífico e sem objectivos políticos claros, provocado quer por razões de natureza sindical, quer pela derrota psicológica dos militares portugueses nas guerras coloniais, viria a influenciar a evolução política mundial deste fim de século. Durante mais de uma década, até à entrada de Portugal como membro de pleno direito na Comunidade Europeia, em 1986, o nosso pequeno e subdesenvolvido país, até então quase esquecido do seu contexto europeu, mobilizaria de forma inédita todas as atenções mundiais com a sua Revolução dos Cravos» e teria reflexos profundos na Europa e no Mundo. A nossa revolução seria quase instantaneamente adoptada por praticamente todas as forças democráticas internacionais, tendo-se democratas cristãos, liberais, socialistas e até comunistas em todas as suas imagináveis versões, em determinados momentos e por diferentes motivos, considerado próximos do nosso 25 de Abril. Para o Partido Socialista, que protagonizaria de certo modo os aspectos positivos da Revolução e que imprimiria a sua marca ao sistema político constitucional vigente, esta seria também a sua década dourada…

Em Abril de 1974, a social-democracia europeia entra na sua fase de apogeu. Partidos filiados na Internacional Socialista, a que o PS português também pertence, estão então no governo na Alemanha Federal, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Grã-Bretanha, Holanda, Israel, Luxemburgo, Noruega e Suécia. Na Escandinávia, os movimentos sociais-democratas de inspiração sindical começam a desprender-se do conservadorismo em que a sua dependência operária os lançara e a ansiar por um maior protagonismo internacional. Na Grã-Bretanha, a onda de revolução social da segunda metade dos anos 60 contra o chamado establishment reabre as portas ao Partido Trabalhista liderado por Harold Wilson, que se mostra impotente para travar a vaga que transformaria aquele partido, tradicionalmente moderado, num dos mais radicais da Internacional Socialista. Na Alemanha, a democracia controlada do pós-guerra deu lugar a um novo Partido Social-Democrata com forte liderança de Willy Brandt e Helmut Schrnidt os quais, apesar das nuances entre si, tinham o objectivo comum de transformar novamente a Alemanha num país unificado e no motor da Europa. Na Áustria, com Bruno Kreisky, na Holanda, com Joop den Uyl, na Bélgica e até na Itália, graças à ameaça do P.C. de Enrico Berlinguer, emergem igualmente partidos sociais-democratas dispostos a dar nova cara ao socialismo. Socialismo até então caracterizado essencialmente pelo seu eurocentrismo. Nos Estados Unidos também sopram ventos de mudança e, quando o 25 de Abril acontece em Portugal, já a administração republicana de Richard Nixon está ferida de morte com o caso Watergate. Quando James Carter e Walter Mondale lançam a sua plataforma eleitoral de cooperação internacional e de defesa dos Direitos Humanos, em 1976, Willy Brandt prepara-se para ser eleito presidente da Internacional Socialista, com base num programa de actividades não muito diferente dos valores proclamados pelos democratas americanos e com a firme intenção de pôr fim ao eurocentrismo, dando início a uma nova fase de cooperação internacional entre socialistas democráticos, que alcançasse todos os continentes». In Rui Mateus, Contos Proibidos, 1996, Publicações Dom Quixote, 1996, ISBN 972-201-316-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

JDACT, Rui Mateus, Conhecimento, Política,

A Conspiração do Graal. Lynn Sholes e Joe Moore. « Tocou o chão com uma das mãos e retraiu-a, enojada. O sangue do árabe. Agachou-se e limpou o sangue da mão na perna da calça do homem morto»

jdact e cortesia de wikipedia

«O príncipe das trevas é um cavalheiro». In Shakespeare

 Abandonada. Ninive, norte do Iraque

«(…) Ela se esgueirou pela passagem estreita. Archer estava ao lado do que Cotten pensou que fosse uma cripta na parede mais distante da câmara. Ela vislumbrou restos de ossos escuros e um brilho metálico. Ele trazia consigo uma pequena caixa aberta, cujo interior os dois homens observavam com intensidade. Cotten abriu a boca para chamar. Nesse instante, o árabe puxou uma arma de dentro da túnica. Cotten congelou enquanto o homem apontava a arma para Archer. Entregue-a para mim!, exigiu ele. Archer fechou a tampa e recuou um passo, segurando a caixa com firmeza. Tinha os olhos arregalados e o rosto branco como um esqueleto. Você é um deles. Cotten apoiou as costas contra um andaime frouxo. O andaime saiu do lugar e uma pequena avalanche de seixos e areia desabou ao chão. Com o ruído, os homens se voltaram e por um momento olharam para ela. Archer deixou a caixa cair e tentou segurar a arma. Em seguida, agrediu o homem e ambos rolaram sobre o chão sujo. O árabe golpeou a cabeça do arqueólogo com o cano da arma. Archer ergueu um cotovelo, redireccionando a pontaria da arma exactamente no momento em que ela disparava. O disparo ecoou nas paredes frágeis da câmara. O árabe dominou Archer, forçando a arma contra a maçã do rosto do homem mais velho. Com um gemido alto, Archer levantou o joelho, empurrando o árabe e fazendo com que batesse com a cabeça contra a parede. Atordoado, o árabe deixou-o por um instante e Archer conseguiu esgueirar-se para longe dele. O árabe ergueu o revólver, apontou e Archer mergulhou sobre ele, esmagando o oponente com o seu peso. A arma disparou sob ele. Um segundo tiro foi disparado, mas os corpos de ambos o abafaram. Cotten prendeu a respiração enquanto os dois homens continuavam imóveis. A câmara permaneceu em silêncio, a não ser pelo zumbido do sangue dela pulsando nas orelhas e o batimento do coração contra o peito. Então, finalmente, Archer moveu-se, rolando vagarosamente para longe do árabe. Uma mancha vermelha borrava a parte da frente da camisa. Mais sangue escorria do peito do árabe.  Archer levantou-se com dificuldade e olhou para o homem morto. O peito tremia e ele respirava com dificuldade enxugando o rosto na manga da camisa. Pegou a caixa, segurando-a com firmeza. Ele tossiu e se endireitou, os olhos fixos em Cotten. De repente, entortou os olhos, cambaleando alguns passos antes de desabar no chão. O meu coração, sufocou, a mão sobre o peito.

Cotten deixou a sacola cair e aproximou-se com cautela, olhando atrás de si. Observou o corpo do árabe ao passar por ele. O que quer que eu faça?, indagou, ajoelhando-se ao lado de Archer. Quer que vá buscar ajuda? Não. Archer procurou alcançar a mão dela. Começou a tossir e Cotten apoiou-lhe a cabeça no colo. A caixa, ele murmurou. Fique com ela. Ele olhou para o morto. Nada irá detê-los a partir de agora. Eles quem? O que está dizendo? O rosto dele se contorceu em consequência de uma fisgada de dor. Com as mãos trémulas, ele empurrou a caixa na direcção dela. A pele parecia perder a cor, os lábios escureciam. Deve impedir que eles fiquem com ela. O que é isso?, quis saber Cotten. A voz de Archer sumia, era pouco mais do que um sussurro. Vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito, Mateus. Não estou entendendo. Archer não respondeu, parecendo olhar através dela. Então tentou puxá-la para perto de si e ela se inclinou para ouvir o que ele sussurrava. Depois balançou a cabeça, confusa. Por favor, o que está dizendo não faz nenhum sentido. Quer que eu detenha o sol..., o amanhecer?

Archer parecia delirar, erguendo a cabeça, a voz subitamente forte enquanto falava. Geh el crip. Cotten sentiu o mundo rodar. Archer não podia ter dito o que ela pensava ter ouvido. Era impossível. Impossível. Ele falou numa língua que ela não ouvia desde que era criança. Só uma outra pessoa conversava com ela naquela língua..., a irmã gémea. A irmã gémea dela, que estava morta.

Viagem de Volta

Como pode conhecer essas palavras?, indagou Cotten com voz trémula. Mas Archer já havia fechado os olhos. A mão dele perdeu a força e a cabeça pendia frouxa para trás, o peito silenciou. Archer estava morto. A fieira de lâmpadas piscou e apagou-se, e então tudo ficou às escuras. O combustível do gerador acabou, imaginou ela. Com delicadeza, afastou do colo a cabeça de Archer. Não havia mais nada que pudesse fazer por ele e, como só devia restar um caminhão, era melhor se apressar. Com receio de tropeçar nos escombros, Cotten pôs a caixa debaixo do braço e encaminhou-se como pôde no meio da escuridão na direcção que pensou levar ao túnel. De repente, a terra tremeu e as paredes rangeram. Ela caiu de joelhos e tentou proteger a cabeça, esperando que o tecto desabasse, poeira e areia se espalharam pelo recinto apertado, acumulando-se no cabelo dela e nos dorsos das mãos. Pedregulhos atingiram-lhe as costas. Estariam caindo bombas em algum lugar por ali? O rumor cessou e ela continuou a caminhar com dificuldade. A sacola não devia ter ficado muito longe dali, mas avançar naquele espaço às escuras era penoso. Tocou o chão com uma das mãos e retraiu-a, enojada. O sangue do árabe. Agachou-se e limpou o sangue da mão na perna da calça do homem morto. Quando chegou à parede lembrou-se do caminho que levava à abertura do túnel, onde havia deixado a sacola. Apalpou com os dedos o náilon do forro da sacola até encontrar a lanterna minúscula. A lâmpada piscou quando accionou o interruptor e depois se apagou. Ora, vamos!, murmurou, agitando-a. A lanterna voltou a se acender, mas a luz era pouco mais do que um fraco lampejo. Com a lanterna na boca, Cotten foi jogando filmes e outros objectos no chão sujo e guardou a caixa de Archer dentro da sacola. Depois de arrumar tudo de novo dentro da sacola, a lanterna apagou de novo. Ela apalpou o chão em busca de algo que tivesse esquecido. Um segundo estrondo abalou as paredes, seguido por um terceiro e um quarto. Ouviu-se um estalo inconfundível, que ela reconheceu de quando tinha feito um artigo sobre armamento de alta tecnologia da Força Aérea: bombas sónicas lançadas de caças rompendo a barreira do som». In Lynn Sholes e Joe Moore, A Conspiração do Graal, 2005, Clube do Autor, 2020, ISBN 978-989-724-534-3.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

JDACT, Lynn Sholes, Joe Moore, Literatura, Mistério, Médio Oriente,

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A Conspiração do Graal. Lynn Sholes e Joe Moore. «O homem usava uma camisa escura com marcas pronunciadas de suor em baixo dos braços. O mau cheiro do corpo dele parecia mais intenso no ar frio»

jdact e cortesia de wikipedia

«O príncipe das trevas é um cavalheiro». In Shakespeare

Abandonada. Ninive, norte do Iraque

«(…) Ela fez uma panorâmica do local. Não se viam evidências de armas, nem de nada que lembrasse uma instalação militar. O lugar mais parecia um local de escavação arqueológica. Cestos, barracas provisórias, mesas, pilhas de dejetos. Seria uma escavação arqueológica? Cotten podia jurar que se encontrava em algum lugar próximo às ruínas de antigas edificações assírias espalhadas por toda a região. Diversos caminhões antigos agrupavam-se nas vizinhanças de uma estrutura de pedra parcialmente desmoronada. Um punhado de homens movimentava-se em actividade frenética.  Essa poderia ser a oportunidade de conseguir uma boleia segura para a fronteira, pensou. Mas então hesitou, imaginando se deveria aproveitar a oportunidade. Finalmente, guardou a câmera e se encaminhou na direção das luzes. Próximo ao local, viu homens andando de um lado para outro, carregando equipamentos e engradados nos caminhões. Os confrontos esporádicos entre os militares iraquianos e os cada vez mais ousados rebeldes curdos apoiados pelos americanos provavelmente haviam tornado a região perigosa demais para uma escavação arqueológica. Ela se esforçou para ouvir as vozes dos homens. Turcos! Não iraquianos. Aliviada, Cotten entrou no acampamento e se aproximou de um dos homens. Com licença!, chamou.

O homem usava uma camisa escura com marcas pronunciadas de suor em baixo dos braços. O mau cheiro do corpo dele parecia mais intenso no ar frio. Ele a contemplou com um olhar intenso, como se imaginasse de onde teria surgido. Não inglês, disse, pegando um engradado de uma esteira e atirando-o na caçamba do caminhão. Se ela não se curvasse para trás, teria sido atingida de raspão pela pesada carga. Cotten tentou parar outro homem, que se desviou dela e lançou-lhe um olhar irritado. Alguém a tocou no ombro e ela fez meia-volta. Um homem baixo e atarracado fitava-a de perto. Americana?, indagou ele. Sim. Turco, informou ele e sorriu, revelando uma boca cheia de dentes sujos sob um bigode que lhe recobria todo o lábio superior como uma tenda. Preciso de uma carona, declarou ela, apontando para o norte. Ele virou a cabeça em direção às ruínas. Vá falar com o doutor Archer. Gabriel Archer. Alguém gritou e o turco, inclinando a cabeça de maneira educada, afastou-se apressado. Um pequeno grupo lotava um dos caminhões. O motor foi accionado, tossiu e ganhou vida, e o caminhão se dirigiu para a estrada. Ainda restavam dois outros caminhões no acampamento, mas estavam sendo carregados com pressa. Não lhe restava muito tempo para encontrar aquele doutor Archer e implorar uma carona.

Sob a luz da Lua, ela localizou a entrada da estrutura de pedra. As paredes eram sustentadas por andaimes de madeira e, para entrar, ela precisou se encolher em baixo de uma arcada baixa. Logo à frente, estendia-se uma fieira de lâmpadas penduradas no alto da entrada e ao longo da passagem. Ela seguiu pela passagem até que terminasse num conjunto de degraus levando ao subterrâneo. Cestos de areia se empilhavam nas vizinhanças, esperando para ser alçados para fora e esvaziados em peneiras. Um gerador a gás trepidava, fornecendo energia para a fieira de lâmpadas que se estendia até dentro do buraco. Ela se inclinou sobre o alto dos degraus e chamou: alô... Archer? Não houve resposta e ela chamou mais alto. Doutor Archer? A distância, ouviu o ruído do motor a diesel de outro caminhão entrar em funcionamento. Só restava um caminhão agora. Cotten começou a descer os degraus. O ar gelado cheirava a coisa velha como num mausoléu. Ela havia estado uma única vez num deles, mas esse tipo de humidade diferente, com um cheiro impregnado de terra e rocha, era inconfundível. Muito embora fosse criança na época, lembrava-se do enterro do pai: o perfume dolorosamente doce das flores, o odor estranhamente ácido das substâncias químicas e o cheiro frio, petrificado, da escavação do túmulo. Os degraus terminavam num salão pequeno. Ela o atravessou e caminhou por um túnel estreito que levava a uma câmara maior. Lá, avistou dois homens. Um era ligeiramente curvo e grisalho, vestido com uma camisa caqui empoeirada e calça jeans desbotada. Ele devia ser Archer, pensou, porque o outro homem tinha pele morena e usava um traje característico de árabe». In Lynn Sholes e Joe Moore, A Conspiração do Graal, 2005, Clube do Autor, 2020, ISBN 978-989-724-534-3.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

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