Maio. 1860
«(…) Quando os
camaradas sonolentos o vieram tirar (sim, haviam-no arrastado pelos ombros até
à carreta, o que fez com que a estopa do boneco saísse outra vez para fora),
foi acrescentado ao rosário da tarde um De Profundis pela alma do desconhecido.
E, como a consciência das senhoras ficou satisfeita com isto, não mais se
voltou a falar no assunto. O Príncipe foi raspar um pouco de líquen dos pés da
Flora e pôs-se a passear de um lado para o outro. O sol poente projectava-lhe a
imensa sombra sobre os canteiros fúnebres. De facto, não se havia falado mais
no morto e, no fim de contas, os soldados são soldados precisamente para morrer
em defesa do Rei. A imagem daquele corpo estripado voltava-lhe, porém, muitas
vezes à memória, como para pedir que lhe desse paz pelo único meio possível
para o Príncipe: superando e justificando o seu derradeiro sofrimento com uma
necessidade geral. À sua volta pairavam outros espectros ainda menos atraentes
que aquele; porque morrer por alguém ou por qualquer coisa está certo, é da
própria natureza das coisas; mas era preciso saber ou, pelo menos, ter a certeza
que as pessoas sabem porque ou por quem se morre.
Era isto o que
perguntava aquela face desfigurada e era exactamente neste ponto que as coisas
começavam a confundir-se na névoa. Mas é evidente que ele morreu pelo Rei, caro
Fabrício, ter-lhe-ia respondido, se o Príncipe o tivesse interrogado, o seu
cunhado Málvica, aquele Málvica escolhido sempre como porta-voz da multidão de
amigos. Pelo Rei, que representa a ordem, a continuidade, a decência, o direito
e a honra. Pelo rei que, sozinho, defende a Igreja e impede o desmembramento da
propriedade, objectivos finais da seita. Magníficas palavras estas que se
referiam a tudo quanto era caro ao Príncipe no mais íntimo do seu coração. Qualquer
coisa porém soava falso ainda. Sim, o Rei; até aqui tudo estava bem;
conhecia-o, pelo menos o que tinha morrido há pouco; o actual era apenas um seminarista
vestido de general e, para dizer a verdade, não valia grande coisa. Mas isso
não é raciocinar, rebatia Málvica; um determinado rei pode não estar à altura
da função mas a ideia monárquica permanece válida na mesma. Também aquilo
estava certo; mas os reis que encarnavam uma ideia não podiam ou, pelo menos,
não deviam descer, através dos tempos, abaixo de um certo nível; senão, meu
caro cunhado, também a ideia sofre com isso. Sentado num banco, ali estava ele
contemplando, inerte, a devastação que Bendicó ia operando nos canteiros. De
vez em quando, o cão levantava para ele os olhos inocentes, como a pedir-lhe um
louvor pelo trabalho realizado: catorze cravos despedaçados, meia sebe
arrancada, um rego obstruído. Parecia mesmo um ser humano! Chega, Bendicó, anda
cá. E o animal acorria, poisava-lhe na mão o focinho sujo de terra, ansioso de
mostrar-lhe que a tola interrupção do belo trabalho cumprido lhe havia sido
perdoada. Oh! Aquelas audiências, aquelas muitas audiências que o Rei Fernando
lhe havia concedido, em Caserta, em Capodimonte, em Portici, em Nápoles..., no
inferno!
Ao lado do camarista
de serviço, que o guiava tagarelando, com o bicorne debaixo do braço e os mais
frescos ditos napolitanos nos lábios, percorria-se intermináveis salas de
arquitectura magnífica e de um mobiliário desagradável (exactamente como a
monarquia bourbónica), enfiava-se em corredores sujos e pequenas escadas
vacilantes e chegava-se a uma antecâmara onde muita gente esperava: caras
fechadas de esbirros, caras ávidas de suplicantes recomendados. O camarista
desculpava-se, fazia-o transpor o obstáculo daquela gente vulgar e conduzia-o a
uma outra antecâmara, a que era reservada às pessoas da Corte: um pequeno
compartimento todo azul e prata dos tempos de Carlos III; após uma breve
espera, um criado batia levemente à porta e chegava-se à Presença Augusta.
O gabinete
privado era pequeno e pretensiosamente simples; nas paredes caiadas um retrato
do Rei Francisco I e outro, de aspecto azedo e colérico, da actual Rainha; por
cima do fogão, uma Madona de Andrea dei Sarto parecia espantada de ver-se
rodeada por litografias coloridas representando santos da terceira ordem e
santuários napolitanos. Em cima de uma mesa, com a lamparina acesa em frente,
um Menino Jesus de cera; sobre a secretária modesta, papéis brancos, papéis
azuis, papéis amarelos; toda a administração do Reino chegada à sua fase final,
a da assinatura de Sua Majestade (D. G.). Por detrás desta barreira de
papelada, o Rei, já em pé para não ser obrigado a levantar-se; o Rei com o seu
carão gordo e mortiço entre umas suíças loiras e que vestia uma casaca militar
de tecido grosseiro donde brotavam, em cascata roxa, umas calças tufadas. Dava
um passo em frente com a mão direita já virada para o beijo que depois
recusaria». In Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, 1958, Dom Quixote, 2014, ISBN
978-972-205-467-6.
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