sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Na Casa do Rei Dragão. Stephen Lawhead. «Todos os augúrios haviam apontado para uma mudança: o anel em volta da Lua, durante três noites, antes da neve começar a cair…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«A neve recente jazia, profunda e intocada, por debaixo da luz prateada do céu de madrugada. Lá no alto, um corvo vigiava uma paisagem silenciosa, com as negras asas a tactearem o ar frio e fino. O áspero apelo da ave era o único som que se ouvia muitos quilómetros em redor, quebrando a gelada solidão com um staccato irregular. A toda a sua volta, a terra jazia adormecida nas profundezas do Inverno. Todos os ursos, todas as raposas, lebres e esquilos permaneciam ainda no calor das suas tocas rústicas. Os cavalos e o gado mantinham-se, satisfeitos, nos seus estábulos, de cabeças pendentes de sono ou ruminando em silêncio a primeira ração da manhã. Nos campos, o fumo erguia-se das cabanas dos camponeses para um céu sem vento. subindo pelas rudimentares chaminés, libertado por lareiras que tinham sido mantidas acesas toda a noite. A aldeia, amontoada em volta das poderosas muralhas do castelo de Askelon, dormia num esplendor primitivo, como uma princesa que se sentisse segura nos braços do seu protector. Nada se movia por toda a terra, salvo o corvo que descrevia lentos círculos no céu. Quentin estava deitado na sua cela, a tremer, encolhido numa bola coberta por um fino cobertor de lã que apertava com força em volta das orelhas, num esforço resoluto para manter afastado o frio da noite, já estava acordado, e cheio de frio, muito antes de o céu começar a mostrar um leve tom cinzento através da única fresta, muito alta, da sua cela. Agora, a escuridão afastara-se o suficiente para lhe permitir distinguir os contornos dos objectos muito simples que mobilavam o quarto miserável. Ao lado da enxerga de palha em que dormia encontrava-se um pesado banco em madeira de carvalho, saído das mãos de um qualquer camponês local. Na parede oposta à cama via uma mesa do mesmo estilo, contendo os seus poucos bens pessoais: uma malga de barro para a comida, uma vela num castiçal de madeira, uma pequena campainha para as orações e um rolo de pergaminho onde se encontravam escritas todas as regras e observâncias das suas funções de acólito, e que, ao fim de três anos, ainda se esforçava por decorar.

Algures, nos recessos mais interiores do templo, ouviu-se o toque de um sino. Quentin gemeu, mas depois saltou da cama, enrolando o cobertor em volta dos ombros. Hoje era o dia, recordou-se. O dia da grande mudança. Perguntava a si mesmo qual ela iria ser. Pois apesar de ter acompanhado os portentos com toda a atenção, não era capaz de a adivinhar.

Todos os augúrios haviam apontado para uma mudança: o anel em volta da Lua, durante três noites, antes da neve começar a cair, a própria tempestade que surgira no dia do seu nome, a aranha que vira, atarefada, a construir uma teia atravessada na sua porta (o que acontecera havia algum tempo, mas de que não se esquecera). Não havia dúvidas: estava prevista uma mudança. A sua natureza exacta permanecia um mistério, mas essa era frequentemente a vontade dos deuses, que mantinham oculta uma parte da profecia. Conseguira, finalmente, deduzir a data da mudança, graças a um sonho em que se vira a trepar a uma alta montanha, saltando depois do próprio pináculo, mergulhando no espaço, não a cair mas a voar. Os sonhos de voo davam sempre boa sorte. Além disso, o seu dia de sorte era sempre um dia santo e, aquele dia, o da festa de Kamali, que tinha de admitir tratar-se de um santo de pouca importância, era de qualquer modo o primeiro dia santo que surgira depois do sonho. Hoje, sem dúvida nenhuma, seria o dia do acontecimento: os sinais eram indiscutíveis.

Quentin reviu-os mentalmente enquanto enfiava à pressa, pela cabeça coberta por um cabelo castanho cortado muito curto, o áspero e pesado trajo de acólito. Meteu os pés nas meias largueironas e apertou-as com força com os cordões das sandálias. A seguir. Penado na campainha das orações, correu para fora do cubículo, para o corredor frio e escuro. Quentin ia a meio caminho da galeria de enormes arcos quando ouviu o toque de outro sino. Desta vez era um som profundo e ressoante com três curtos intervalos, seguido por uma pausa breve. O sino repetiu os três toques. Quentin ficou intrigado com o significado do toque. Que se recordasse, nunca antes o tinha escutado. De súbito, compreendeu! Era o alarme! Parou, confuso. Quando se virou para correr em direcção ao som do sino, colidiu cegamente com as formas arredondadas e bem acolchoadas de Biorkis, um dos sacerdotes mais velhos. Cuidado, rapaz!, gritou o sacerdote. bem-humorado. Não há motivo para o pânico! O sino acabou agora mesmo de tocar a alarme!, exclamou Quentin, procurando rodear o sacerdote ofegante. Temos de nos apressar! Não é preciso. Os servos de Ariel não correm. Além disso, acrescentou, com uma careta, aquele era o toque de chamada e não o do alarme.

De súbito, Quentin sentiu-se muito estúpido. A cor subiu-lhe ao rosto e os olhos procuraram as lajes de pedra que tinha sob os pés. O jovial sacerdote colocou-lhe um pesado braço sobre os seus ombros jovens. Anda, vamos ver qual o motivo para nos arrancarem tão cedo ao calor do sono, nesta fria madrugada. Seguiram os dois juntos ao longo do corredor e, pouco depois, chegavam à vasta entrada do templo. Um vento frio e penetrante precipitava-se pelas enormes portas abertas. Um sacerdote com sotainas escarlates, um dos da Ordem dos Guardas do Templo, estava já a empurrar as gigantescas portas de madeira, para as fechar. Três outros rodeavam um grande fardo informe que jazia a seus pés, no chão. Fosse o que fosse, aquele volume escuro, tão incerto sob a fraca luz da manhã, acabara de ser arrastado do exterior. Havia um rasto de neve a atestar esse facto, para além da neve que cobria o próprio fardo. Ao aproximar-se. Quentin percebeu que o fardo era uma forma humana muito embrulhada para se proteger do frio. Os sacerdotes debruçavam-se agora sobre o volume inerte, que, de acordo com todas as aparências, deveria estar morto. Biorkis pousou a mão no braço de Quentin, num aviso, e avançou devagar». In Stephen Lawhead, Na Casa do Rei Dragão, 1982, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-099-2.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

JDACT, Stephen Lawhead, Literatura, Religião,