«Em 1229, o rasto de homicídios deixado por um violento cavaleiro acaba forçando o inquisidor Konrad von Marburg a investigar a misteriosa seita dos Luciferianos. Um mestre em medicina expulso da Universidade de Notre-Dame acaba atraindo as suspeitas do inquisidor, mas ele não será o único a cair nas mãos do religioso, ávido por entregar um culpado à justiça divina da Santa Inquisição Romana (maldita).O mercador de relíquias Ignazio de Toledo, chega a Nápoles e desperta a desconfiança de Von Marburg. Descobrir uma forma de provar a sua inocência não será fácil. Ignazio inicia então uma longa e arriscada investigação que o levará à Corte dos Milagres de Frederico II, na qual se reúnem algumas das mentes mais brilhantes e esclarecidas da época. Estará o mistério da temível seita escondido entre os muros do palácio imperial? E o que ocultam os Luciferianos de tão precioso que compense o sacrifício de tantas vidas?» In Sinopse
1229. 154 de Janeiro. Basílica Minor de Seligenstadt
«A
aurora tardava, sufocada por uma noite
impenetrável. Noite que talvez durasse para sempre. Na basílica carolíngia, num
recinto distante do dormitório, Konrad von Marburg, imóvel como um cão de caça
que acaba de farejar a presa, contemplava a paisagem coberta de sombras.
Esperava qualquer coisa, um sinal, uma visão, e, no íntimo, não sabia se esta
se manifestaria diante de seus olhos ou no fundo de sua alma. No entanto ele já
havia adivinhado o que era. Depois de trinta anos de preces e exorcismos, não
podia enganar-se. Percebera-o como um som saído das trevas, como o relincho de
um cavalo. E estava pronto para lutar. Semicerrou
as pálpebras, indiferente ao ar frio que lhe fustigava o rosto. O vento norte
sibilava furioso pelos campos e estradas. Afagos de uma natureza inclemente,
dons de um Inverno que comprimia a Turíngia e a Renânia num abraço gelado.
Aquilo era quase uma advertência, uma antecipação do que lhe esperava. Porque
ele, Konrad von Marburg, tinha sido capaz de desvendar a trama do Maligno nos
acontecimentos humanos. Fiat voluntas tua, ruminou,
inclinando levemente a cabeça. Fechou a janela e voltou para a penumbra do
quarto. Sobre uma escrivaninha, havia duas cartas, uma em alemão, a outra em
latim. Havia escrito as suas de uma vez, durante a noite, deixando ali para que
a tinta secasse. A situação era muito grave. Dentro de algumas horas, um
mensageiro sairia para entregá-las. A primeira tinha por destinatário o conde
da Turíngia, dono daquelas terras; a segunda, Sua Santidade em pessoa, o papa
Gregório IX. O conteúdo de ambas era mais ou menos o mesmo, com ligeiras
variantes quanto às formas de tratamento e aos encómios.
Konrad sentou-se à escrivaninha e apanhou a carta escrita
em latim para relê-la à luz de uma vela. Tinha a certeza de que a havia
contaminado com alguns germanismos, o que, porém, não devia preocupá-lo. Quando
ainda não era papa e atendia pelo nome de Ugolino di Anagni, Gregório IX tinha
viajado como legado apostólico pela Alemanha e podia entender perfeitamente a
língua daquele país. O texto dizia:
In
nomine Domini Jesus Christi. A Sua Santidade, papa Gregório, bispo da
Igreja Católica e servo dos servos de Deus, o signatário Konradus de Marburc,
pregador verbi Dei, relata os resultados das suas investigações
sobre a corrupção herética que infesta a Alemanha. No mês de Janeiro do
corrente ano, dirigi-me à diocese da Mogúncia para visitar a casa de um clérigo
chamado Wilfridus, já suspeito de heresia, e ali me deparei com sinais
inequívocos da evocação do Maligno. Registei os muitos indícios de necromancia
que pude identificar, mandei prender o clérigo e o submeti a interrogatório.
Embora estivesse diante de um religioso e não de um simples leigo, active-me
com firmeza ao meu ofício. O interrogado começou por mentir, como fazem aqueles
que procuram esconder a própria culpa, mas depois confessou adorar uma trindade
herética mais antiga que a cristã, a qual suspeito ser Lúcifer no acto de se
antepor à Santíssima Trindade. Corroborando essas suspeitas, Wilfridus
ostentava na mão direita a marca do pacto com o Maligno, que por decência e
temor a Deus evito descrever a Vossa Santidade. Ainda mais grave, o prisioneiro
confessou ter sido iniciado nesse culto blasfemo por um magíster de Toledo.
Descreveu-o como um homem alto, magro, trajado de preto, cujo nome jurou
desconhecer. Porém eu, com base em investigações anteriores, sei bem quem é
este homem. É o Homo Niger, o Homem Negro que com frequência se
apresenta aos hereges durante os seus vis conciliábulos. Diante de tamanhas
evidências, solicito permissão para estender as pesquisas ao sul dos Alpes,
onde, segundo o interrogado, se oculta a seita mais importante fundada pelo magíster
de Toledo.
E uma vez que os membros da tal seita se entregam às mais aberrantes heresias,
isto é, ao culto de Lúcifer, sugiro que esses luciferianos sejam fulminados por
anátema e punidos pela vara da Santa Igreja Romana.
In Marcello
Simoni, O Labirinto no Fim do Mundo, 2013, Editora Jangada, 2015, ISBN
978-855-539-026-5.
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