segunda-feira, 17 de agosto de 2020

O Labirinto no Fim do Mundo. Marcello Simoni. «A aurora tardava, sufocada por uma noite impenetrável. Noite que talvez durasse para sempre. Na basílica carolíngia, num recinto distante do dormitório…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Em 1229, o rasto de homicídios deixado por um violento cavaleiro acaba forçando o inquisidor Konrad von Marburg a investigar a misteriosa seita dos Luciferianos. Um mestre em medicina expulso da Universidade de Notre-Dame acaba atraindo as suspeitas do inquisidor, mas ele não será o único a cair nas mãos do religioso, ávido por entregar um culpado à justiça divina da Santa Inquisição Romana (maldita).O mercador de relíquias Ignazio de Toledo, chega a Nápoles e desperta a desconfiança de Von Marburg. Descobrir uma forma de provar a sua inocência não será fácil. Ignazio inicia então uma longa e arriscada investigação que o levará à Corte dos Milagres de Frederico II, na qual se reúnem algumas das mentes mais brilhantes e esclarecidas da época. Estará o mistério da temível seita escondido entre os muros do palácio imperial? E o que ocultam os Luciferianos de tão precioso que compense o sacrifício de tantas vidas?» In Sinopse

1229. 154 de Janeiro. Basílica Minor de Seligenstadt

«A aurora tardava, sufocada por uma noite impenetrável. Noite que talvez durasse para sempre. Na basílica carolíngia, num recinto distante do dormitório, Konrad von Marburg, imóvel como um cão de caça que acaba de farejar a presa, contemplava a paisagem coberta de sombras. Esperava qualquer coisa, um sinal, uma visão, e, no íntimo, não sabia se esta se manifestaria diante de seus olhos ou no fundo de sua alma. No entanto ele já havia adivinhado o que era. Depois de trinta anos de preces e exorcismos, não podia enganar-se. Percebera-o como um som saído das trevas, como o relincho de um cavalo. E estava pronto para lutar. Semicerrou as pálpebras, indiferente ao ar frio que lhe fustigava o rosto. O vento norte sibilava furioso pelos campos e estradas. Afagos de uma natureza inclemente, dons de um Inverno que comprimia a Turíngia e a Renânia num abraço gelado. Aquilo era quase uma advertência, uma antecipação do que lhe esperava. Porque ele, Konrad von Marburg, tinha sido capaz de desvendar a trama do Maligno nos acontecimentos humanos. Fiat voluntas tua, ruminou, inclinando levemente a cabeça. Fechou a janela e voltou para a penumbra do quarto. Sobre uma escrivaninha, havia duas cartas, uma em alemão, a outra em latim. Havia escrito as suas de uma vez, durante a noite, deixando ali para que a tinta secasse. A situação era muito grave. Dentro de algumas horas, um mensageiro sairia para entregá-las. A primeira tinha por destinatário o conde da Turíngia, dono daquelas terras; a segunda, Sua Santidade em pessoa, o papa Gregório IX. O conteúdo de ambas era mais ou menos o mesmo, com ligeiras variantes quanto às formas de tratamento e aos encómios.

Konrad sentou-se à escrivaninha e apanhou a carta escrita em latim para relê-la à luz de uma vela. Tinha a certeza de que a havia contaminado com alguns germanismos, o que, porém, não devia preocupá-lo. Quando ainda não era papa e atendia pelo nome de Ugolino di Anagni, Gregório IX tinha viajado como legado apostólico pela Alemanha e podia entender perfeitamente a língua daquele país. O texto dizia:

 

In nomine Domini Jesus Christi. A Sua Santidade, papa Gregório, bispo da Igreja Católica e servo dos servos de Deus, o signatário Konradus de Marburc, pregador verbi Dei, relata os resultados das suas investigações sobre a corrupção herética que infesta a Alemanha. No mês de Janeiro do corrente ano, dirigi-me à diocese da Mogúncia para visitar a casa de um clérigo chamado Wilfridus, já suspeito de heresia, e ali me deparei com sinais inequívocos da evocação do Maligno. Registei os muitos indícios de necromancia que pude identificar, mandei prender o clérigo e o submeti a interrogatório. Embora estivesse diante de um religioso e não de um simples leigo, active-me com firmeza ao meu ofício. O interrogado começou por mentir, como fazem aqueles que procuram esconder a própria culpa, mas depois confessou adorar uma trindade herética mais antiga que a cristã, a qual suspeito ser Lúcifer no acto de se antepor à Santíssima Trindade. Corroborando essas suspeitas, Wilfridus ostentava na mão direita a marca do pacto com o Maligno, que por decência e temor a Deus evito descrever a Vossa Santidade. Ainda mais grave, o prisioneiro confessou ter sido iniciado nesse culto blasfemo por um magíster de Toledo. Descreveu-o como um homem alto, magro, trajado de preto, cujo nome jurou desconhecer. Porém eu, com base em investigações anteriores, sei bem quem é este homem. É o Homo Niger, o Homem Negro que com frequência se apresenta aos hereges durante os seus vis conciliábulos. Diante de tamanhas evidências, solicito permissão para estender as pesquisas ao sul dos Alpes, onde, segundo o interrogado, se oculta a seita mais importante fundada pelo magíster de Toledo. E uma vez que os membros da tal seita se entregam às mais aberrantes heresias, isto é, ao culto de Lúcifer, sugiro que esses luciferianos sejam fulminados por anátema e punidos pela vara da Santa Igreja Romana.

 

In Marcello Simoni, O Labirinto no Fim do Mundo, 2013, Editora Jangada, 2015, ISBN 978-855-539-026-5.

 

Cortesia de EJangada/JDACT

 

JDACT, Marcello Simoni, Literatura, Mistério,