«Quando o século XV dava lugar ao XVI, Jesus voltou. Reapareceu na Espanha, nas ruas de Sevilha. Nenhuma fanfarra saudou o seu advento, nem coros de anjos, nem especáculos sobrenaturais, nem extravagantes fenómenos meteorológicos. Ao contrário, ele chegou de mansinho e sem ser visto. No entanto, vários passantes o reconheceram, sentiram uma irresistível atracção para ele, cercaram-no, amontoaram-se à sua volta, seguiram-no. Jesus andou com toda modéstia entre eles, um suave sorriso de inefável misericórdia nos lábios, estendeu-lhes as mãos, concedeu-lhes a sua bênção; e um velho na multidão, cego de infância, milagrosamente recuperou o dom da visão. A multidão chorou e beijou o chão a seus pés, enquanto crianças jogavam flores à sua frente, cantavam e erguiam as vozes em hosanas. Nos degraus da catedral, um préstito em prantos conduzia para dentro um caixãozinho aberto. No seu interior, quase escondida pelas flores, jazia uma criança de sete anos, filha única de um cidadão importante. Exortada pela multidão, a mãe enlutada voltou-se para o recém-chegado e implorou-lhe que trouxesse de volta à vida a menina morta. O cortejo fúnebre parou, e o caixão foi deposto aos pés dele nos degraus da catedral. Levanta-te, donzela! Ele ordenou em voz baixa, e a menina logo se pôs sentada, olhando em volta e sorrindo, os olhos arregalados de espanto, ainda a segurar o buquê de rosas brancas que fora colocado nas suas mãos.
Esse milagre foi testemunhado pelo
cardeal e Grande Inquisidor da cidade, quando passava com o seu séquito de
guarda-costas um velho, de quase noventa anos, alto e empertigado de estatura,
com urna cara enrugada e olhos muito fundos, nos quais, no entanto, ardia ainda
um brilho de luz. Tal era o terror que ele inspirava que a multidão, apesar das
circunstâncias extraordinárias, caiu em deferente silêncio e abriu-se para dar-lhe
passagem. Tampouco alguém ousou interferir quando, por ordem do velho prelado,
o recém-chegado foi sumariamente preso pelos guarda-costas e levado para a prisão.
Esta é a abertura da Parábola do Grande Inquisidor, de Feodor Dostoiévski, unia
narrativa mais ou menos independente, de vinte e cinco páginas, embutida nas
oitocentas e tantas de Os Irmãos Karamazovi, romance publicado pela primeira
vez em fascículos numa revista de Moscovo em 1879 e 1880. O verdadeiro
significado da parábola está no que vem depois do draniático prelúdio. Pois o
leitor espera, claro, que o Grande Inquisidor fique devidamente horrorizado ao
saber da verdadeira identidade do seu prisioneiro. Não é isso, porém, que acontece.
Quando ele visita Jesus na cela,
está claro que sabe muitíssimo bem quem é o prisioneiro; mas esse conhecimento
não o detém. Durante o prolongado debate filosófico que se segue, o velho permanece
inflexível em sua posição. Nas escrituras, Jesus é tentado pelo demônio no
deserto com a perspectiva de poder, autoridade. Desde que Os Irmãos Karamdzovi
foi publicado e traduzido, o Grande Inquisidor de Dostoiévski gravou-se na
nossa consciência como a imagem e a encarnação definitivas da Inquisição (maldita). Podemos
compreender o agónico dilenia do velho prelado. Podemos admirar a complexidade
de seu carácter. Podemos até mesmo respeitá-lo (?) pelo martírio pessoal que
está disposto a aceitar, sua auto-condenação à perdição, em nome de uma instituição
que considera maior que ele próprio. Também podemos respeitar o seu realismo secular
e a compreensão brutalmente cínica por trás dele, a sabedoria mundana que
reconhece o mecanismo e a dinâmica do poder mundano. Alguns de nós bem podem perguntar
se, estando na posição dele e com as suas responsabilidades não seriam
impelidos a agir como ele (nunca!). Mas apesar de toda a tolerância, da
compreensão, talvez da simpatia e perdão que consigamos angariar para esse
homem, não podemos escapará consciência, de que ele é, por qualquer padrão
moral honesto, intrinsecamente mal e que a instituição que representa é culpada
de uma monstruosa hipocrisia. Até onde é exacto, representativo, o retrato
pintado por Dostoiévski? Em que medida a figura na parábola reflecte com justeza
a instituição histórica real? E se a Inquisição (maldita), personificada
pelo velho prelado de Dostoiévski, pode de facto ser equiparada ao demónio, em
que medida pode essa equiparação ser estendida à Igreja como um todo?» In Michael
Baigent e Richard Leigh, A Inquisição, Edição Imago, 2001, ISBN
978-853-120-756-3.
Cortesia de EImago/JDACT