«(…) Você atacou essa mulher!, gritou para o pedinte. N-Não, gaguejou o homem, confuso. Eu apenas pedi uma moeda. Olhou para mim, como se eu pudesse confirmar o que ele dizia. Amedrontada, sacudi a cabeça e solucei novamente. Ele me tocou. Por causa disso, vai morrer!, bradou Ramón, e tentou puxar a espada da bainha. Ele, porém, não tinha praticado muito para conseguir fazer isso com apenas um movimento. A espada ficou presa na sua túnica, ele praguejou e sacou a adaga do cinto. O pedinte virou-se e saiu correndo pela porta lateral. Ramón saiu em perseguição, e eu, apavorada por ter sido deixada sozinha, ergui as saias e corri atrás dos dois.
Saulo
Eu tinha visto meu pai entrar na
igreja pela porta lateral. Mordi o lábio, constrangido, ao me dar conta de que ele
foi muito humilde e receoso de entrar pela porta principal. Ele não sabia que
eu estava lá; que o seguira durante a última hora enquanto ele caminhava
penosamente pela cidade, mendigando. Meu pai teria ficado envergonhado se
soubesse que seu filho presenciara pessoas o rejeitando e um Grande do Reino
empurrando-o para o lado e cuspindo na rua, enquanto ele passava. Ele pensava
que eu estivesse com minha mãe, sentado ao lado do colchão de palha onde ela se
encontrava deitada, incapaz de se mexer por causa da doença que a derrubara
algumas semanas antes. Supostamente, eu devia permanecer a seu lado e tentar
mantê-la quieta, pois na noite anterior ela passara a berrar palavras numa língua
desconhecida para mim. Quando isso começou, meu pai ficou muito aflito e tentou
silenciá-la para que os vizinhos não a ouvissem falar nessa língua estranha. Então
ele acariciou a ua cabeça, ao mesmo tempo que murmurava, meio que cantando, um
poema no seu ouvido. Isso pareceu acalmá-la. Quando lhe perguntei o que havia dito,
ele me respondeu que era a fala dos anjos. Mas reconheci a sua expressão: eu já
a tinha visto antes no seu rosto, noutros lugares onde vivemos, quando ele
decidiu que estava na hora de nos mudarmos; o mesmo olhar de um animal caçado
que fareja perigo. Toda a minha vida tínhamos viajado de cidade em cidade.
Nessas ocasiões não pensei muito sobre o motivo disso. Nunca havia dinheiro
suficiente. Qualquer um que conseguíamos meu pai usava para comprar remédios,
pois a saúde de minha mãe sempre foi ruim, e geralmente um de nós tinha de
ficar em casa para cuidar dela.
Nossos dias eram gastos em
conseguir comida suficiente para nos alimentarmos, e era isso que estava
ocupando minha mente. Eu sabia que era um pedinte melhor do que meu pai. Ele
ficaria angustiado se descobrisse que, algumas vezes, recorri à mendicância
para termos pão. Mas eu já fizera isso antes, tirando vantagem do facto de que
parecia muito mais jovem do que realmente era. Quando nenhum de nós dois conseguia
trabalho, eu me aconchegava num vão de porta até avistar alguma señorita rica
se aproximando, então choramingava de modo patético. Entretanto, ao me sentar
debaixo de uma árvore na praça do lado de fora da igreja, naquele abafado dia
de verão, tinha esperanças de que meu pai fosse bem sucedido. Ao sair naquela
manhã, ele me pedira que cuidasse de minha mãe, mas eu lhe desobedeci. Minha mãe
tinha caído no sono, e segui meu pai enquanto ele ia atrás da moça ricamente
vestida e de seu acompanhante. Calculei, como imaginei que ele o fez, que, se
alguém como ela estava andando por essa área, só podia ter um destino. Devia
estar indo ao santuário da Virgem Maria, que ficava no interior da igreja sobre
o rochedo onde se podia contemplar o mar. E, se essa moça ia visitar uma igreja
num dia não reservado à prática religiosa, então o mais provável era que
tivesse uma tendência à piedade. Parecia ter a minha idade, com o mais lindo
cabelo negro comprido preso em tranças e cachos por refinados pentes de casco
de tartaruga. De vez em quando, o jovem nobre que a acompanhava virava-se para
sorrir para ela e estender a mão para tocar-lhe o cabelo. Ela parecia uma boa
moça, o rosto coberto apropriadamente por um véu, amável e devota. Tinha vindo
a esta parte pobre da cidade para visitar o santuário, portanto isso devia significar
que buscava algum favor especial, que tinha uma contricção ou uma súplica. Pensei,
ela vai ouvir meu pai, do mesmo modo como espera que seu Deus a ouça. Eu estava
errado». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record,
2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,