Paris, 3 de Junho de 1940
«(…) Jean-Luc era atencioso e
julgo que naquele dia a minha prima ainda gostava dele, embora não tivessem
muitas afinidades. O francês estudava medicina, ela literatura; Jean-Luc odiava
mexilhões, Carol adorava-os; o rapaz preferia o teatro, a minha prima, o
cinema; ele nunca dançava, ela não perdia uma oportunidade. Avisadamente,
jamais haviam dito um ao outro que se amavam. Não sendo uma paixão, eram, no
entanto, uma companhia mútua agradável, pelo menos até Junho, mês em que
Jean-Luc se juntaria à família em Lyon, enquanto ela permaneceria, feliz, em
Paris. Se os alemães deixarem, rematou Carol. Cuidado, não fiques grávida!,
alertou Polly. A minha prima preparava-se para a tranquilizar, a mãe ensinara-a
antes de morrer e Jean-Luc usava uma protecção de borracha, desagradável, mas
útil. Contudo, não teve tempo, pois a americana desatou a relembrar os cinco
anos em que tentara engravidar sem sucesso. Não por falta de tentativas, garantiu, faziam-no três vezes por
semana! O problema era o marido, pois a ela vinha-lhe o sangue mensalmente,
nunca percebera tal mistério. Devia casar-me outra vez!, exclamou. Ao contrário
do que postulava a opinião popular, defendeu que se fazia mais sexo no
matrimónio do que fora dele. A força do hábito empurrava os corpos na direcção
e com uma regularidade certas. Com o marido era às terças, quintas e sábados,
dia em que Polly ficava por cima, a posição em que sentia mais prazer. Só no
último ano haviam diminuído o ritmo dos encontros, passando a fazê-lo apenas ao
sábado à noite e, mesmo assim, ela precisava já de estar muito bebida para
gostar. No hospital, há um inglês que me deixa louca!, informou Polly de
rompante. O terceiro sobrevivente que trouxera de Dunquerque, um piloto cujo
avião se despenhara na Bélgica semanas antes, mexia-lhe com as entranhas. É
careca e lindo. O que ela mais gostava em
Rover, nome do aviador, eram as mãos. Ou melhor, a mão esquerda, pois a direita
havia sido amputada pelos médicos, tão graves eram os ferimentos. Mas ao safado
chega-lhe uma! Tem uns dedos longos, dá vontade de os meter dentro da nossa
camisa! Carol riu-se, imaginando o pobre Rover a aturar as visitas daquela
desvairada, que se enervava com o inexplicável desinteresse dele. Seguramente o
homem avariara a cabeça, pois permanecia melancólico, calado e apático. Nunca sorria
a Polly, num desdém masculino que funcionava como uma vitamina afrodisíaca. Ontem
quase saltei para cima dele!, confessou a americana. Dito isto, fez uma careta
enojada, dizendo que antes teria de afastar um desagradável gato. O inglês
trouxe um gato no avião?, surpreendeu-se Carol. Era um felino velho e cego, um
cliente antigo e permanente do hospital, que Rover adoptara, dando-lhe um
pratinho de leite diário e habituando o animal a trepar para a cama, onde
arruinava o ambiente de sedução promovido por Polly. Incomoda-te um gato cego? A
outra ignorou a pergunta de Carol e questionou-se filosoficamente: o que há de
errado com Rover? O silêncio solitário do inglês, a anemia derrotada que devia
morar-lhe no coração, a humilhação dolorosa por ter perdido uma parte útil do
corpo, a sensação de impotência por não poder voltar ao combate, ou apenas as
saudades da família e dos colegas, nada disso passava pela cabeça de Polly. O
que a enervava era um enigma primário: como era possível Rover não a desejar? Talvez
seja casado, sugeriu Carol.
A
americana abanou a cabeça com solenidade: o piloto não tinha esposa, dissera-o à
chegada ao hospital, ao ser submetido a um breve questionário pessoal. Se
calhar tem uma namorada em Inglaterra, por quem está apaixonado, adiantou a
minha prima, romântica. Irritada, após um gole súbito de whisky, Polly sentenciou: nenhum namoro justifica tanta abstinência!
Rover até podia amar outra, mas essa não estava ao pé dele, como ela! Que mal tinha
um romance em Paris? Porque era tão desprovido de desejo? Zangada, levantou-se
de súbito, agarrou na garrafa pelo gargalo e explodiu: preciso de um homem!,
informou Carol de que ia a um night-club e
perguntou: posso levar a tua bicicleta? A minha prima empalideceu. Há bombas lá
fora... Furibunda, Polly virou-lhe as costas. Nesse caso, vou de ambulância! Aliviada,
Carol respirou fundo. Jamais colocaria a Hirondelle
nas mãos daquela endiabrada criatura!»
In
Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN
978-989-780-124-2.
Cortesia CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris,