domingo, 30 de agosto de 2020

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «A americana abanou a cabeça com solenidade: o piloto não tinha esposa, dissera-o à chegada ao hospital, ao ser submetido a um breve questionário pessoal»

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Paris, 3 de Junho de 1940

«(…) Jean-Luc era atencioso e julgo que naquele dia a minha prima ainda gostava dele, embora não tivessem muitas afinidades. O francês estudava medicina, ela literatura; Jean-Luc odiava mexilhões, Carol adorava-os; o rapaz preferia o teatro, a minha prima, o cinema; ele nunca dançava, ela não perdia uma oportunidade. Avisadamente, jamais haviam dito um ao outro que se amavam. Não sendo uma paixão, eram, no entanto, uma companhia mútua agradável, pelo menos até Junho, mês em que Jean-Luc se juntaria à família em Lyon, enquanto ela permaneceria, feliz, em Paris. Se os alemães deixarem, rematou Carol. Cuidado, não fiques grávida!, alertou Polly. A minha prima preparava-se para a tranquilizar, a mãe ensinara-a antes de morrer e Jean-Luc usava uma protecção de borracha, desagradável, mas útil. Contudo, não teve tempo, pois a americana desatou a relembrar os cinco anos em que tentara engravidar sem sucesso. Não por falta de  tentativas, garantiu, faziam-no três vezes por semana! O problema era o marido, pois a ela vinha-lhe o sangue mensalmente, nunca percebera tal mistério. Devia casar-me outra vez!, exclamou. Ao contrário do que postulava a opinião popular, defendeu que se fazia mais sexo no matrimónio do que fora dele. A força do hábito empurrava os corpos na direcção e com uma regularidade certas. Com o marido era às terças, quintas e sábados, dia em que Polly ficava por cima, a posição em que sentia mais prazer. Só no último ano haviam diminuído o ritmo dos encontros, passando a fazê-lo apenas ao sábado à noite e, mesmo assim, ela precisava já de estar muito bebida para gostar. No hospital, há um inglês que me deixa louca!, informou Polly de rompante. O terceiro sobrevivente que trouxera de Dunquerque, um piloto cujo avião se despenhara na Bélgica semanas antes, mexia-lhe com as entranhas. É careca e lindo. O que ela mais gostava em Rover, nome do aviador, eram as mãos. Ou melhor, a mão esquerda, pois a direita havia sido amputada pelos médicos, tão graves eram os ferimentos. Mas ao safado chega-lhe uma! Tem uns dedos longos, dá vontade de os meter dentro da nossa camisa! Carol riu-se, imaginando o pobre Rover a aturar as visitas daquela desvairada, que se enervava com o inexplicável desinteresse dele. Seguramente o homem avariara a cabeça, pois permanecia melancólico, calado e apático. Nunca sorria a Polly, num desdém masculino que funcionava como uma vitamina afrodisíaca. Ontem quase saltei para cima dele!, confessou a americana. Dito isto, fez uma careta enojada, dizendo que antes teria de afastar um desagradável gato. O inglês trouxe um gato no avião?, surpreendeu-se Carol. Era um felino velho e cego, um cliente antigo e permanente do hospital, que Rover adoptara, dando-lhe um pratinho de leite diário e habituando o animal a trepar para a cama, onde arruinava o ambiente de sedução promovido por Polly. Incomoda-te um gato cego? A outra ignorou a pergunta de Carol e questionou-se filosoficamente: o que há de errado com Rover? O silêncio solitário do inglês, a anemia derrotada que devia morar-lhe no coração, a humilhação dolorosa por ter perdido uma parte útil do corpo, a sensação de impotência por não poder voltar ao combate, ou apenas as saudades da família e dos colegas, nada disso passava pela cabeça de Polly. O que a enervava era um enigma primário: como era possível Rover não a desejar? Talvez seja casado, sugeriu Carol.

A americana abanou a cabeça com solenidade: o piloto não tinha esposa, dissera-o à chegada ao hospital, ao ser submetido a um breve questionário pessoal. Se calhar tem uma namorada em Inglaterra, por quem está apaixonado, adiantou a minha prima, romântica. Irritada, após um gole súbito de whisky, Polly sentenciou: nenhum namoro justifica tanta abstinência! Rover até podia amar outra, mas essa não estava ao pé dele, como ela! Que mal tinha um romance em Paris? Porque era tão desprovido de desejo? Zangada, levantou-se de súbito, agarrou na garrafa pelo gargalo e explodiu: preciso de um homem!, informou Carol de que ia a um night-club e perguntou: posso levar a tua bicicleta? A minha prima empalideceu. Há bombas lá fora... Furibunda, Polly virou-lhe as costas. Nesse caso, vou de ambulância! Aliviada, Carol respirou fundo. Jamais colocaria a Hirondelle nas mãos daquela endiabrada criatura!» In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

Cortesia CdasLetras/JDACT

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