(…) Não duvidamos delas, confirmava Burot. É a técnica do hipnotismo em si que..., Bourru e Burot me explicaram os vários sistemas de hipnose, desde aqueles ainda charlatanescos de um certo abade Faria esse nome dumasiano me deixou de orelha em pé, mas sabe-se que Dumas saqueava crónicas verdadeiras até os já científicos do doutor Braid, um verdadeiro pioneiro. Agora, dizia Burot, os bons magnetizadores seguem métodos mais simples. E mais eficazes, esclarecia Bourru. Diante do enfermo, faz-se oscilar uma medalha ou uma chave, pedindo-lhe que a olhe fixamente: no arco de um a três minutos as pupilas do indivíduo têm um movimento oscilatório, o pulso cai, os olhos se fecham, o rosto exprime uma sensação de repouso e o sono pode durar até vinte minutos. Convém acrescentar, corrigia Burot, que depende do indivíduo, porque a magnetização não resulta da transmissão de fluidos misteriosos como queria aquele bufão do Mesmer, mas de fenómenos de auto-sugestão. E os ascetas indianos obtêm o mesmo resultado olhando atentamente a ponta do nariz; ou os monges do monte Athos, fitando o próprio umbigo.
Nós não acreditamos muito nessas
formas de auto-sugestão, complementava Burot, embora não façamos outra coisa
senão pôr em prática intuições que foram próprias de Charcot antes que ele começasse
a ter tamanha fé no hipnotismo. Estamos nos ocupando de casos de variação da
personalidade; isto é, de pacientes que um dia pensam ser uma pessoa e outro
dia, outra, e as duas personalidades se ignoram reciprocamente. No ano passado,
entrou para nosso hospital um certo Louis. Caso interessante, precisava Bourru.
Apresentava paralisia, anestesias, contraturas, espasmos musculares, hiperestesias,
mutismo, irritações cutâneas, hemorragias, tosse, vómito, ataques epilépticos,
catatonia, sonambulismo, dança de São Guido, malformações da linguagem... Às
vezes se acreditava um cão, completava Burot, ou uma locomotiva a vapor. E também
tinha alucinações persecutórias, restrições do campo visual, alucinações gustativas,
olfativas e visuais, congestão pulmonar pseudo-tubercular, cefaleias, dor de
estômago, prisão de ventre, anorexia, bulimia e letargia, cleptomania... Em
suma, concluía Bourru, um quadro normal. Pois bem, nós, em vez de recorrermos à
hipnose, aplicamos uma barra de aço sobre o braço direito do enfermo, e eis que
nos apareceu, como por encanto, um personagem novo. Paralisia e insensibilidade
desapareceram do lado direito e se transferiram para o lado esquerdo». In
Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Biblioteca Digital, Editora Record, tradução
de Joana Melo, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.
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