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As
Mulheres de Camões
Violante
de Andrade. 1543
«Passeava
eu de liteira pelas ruas de Coimbra e eis que o vislumbro, galhofando com
outros moços escolares. A barba cor de fogo e o estilo peralta e galante
prenderam-me a atenção. Marquei-o mas, simulando recato, baixei os olhos. Ainda
que, por uso, um mero vislumbre de olhos meus seja flecha no alvo, não cuidava que
um desvio de olhar fosse também dar armas de vantagem ao amor. Mas assim foi. Tardou
pouco para que os versos do mancebo me chegassem às mãos:
Pus o
coração nos olhos,
e os
olhos pus no chão
por vingar
o coração.
…
Se pouco
vos mereci,
não me
estimais mais que o chão,
a quem
vós o galardão
dais,
a mo negais a mi.
Logo
achei ocasião de indagar a Francisco Morais, que lodos os meandros conhece,
quem era aquele rapaz de tão desusado colorido. O nosso hábil e douto amigo logo
se me pôs a recitar um soneto que o dito moço barbirruivo, de nome Luís Vaz
Camões, escrevera aos dez anos de idade, não sem um leve esgar de contrariedade.
Seria inveja, admiração ou uma mescla das duas?
Os reinos
e os impérios poderosos,
Que em
grandeza no mundo mais cresceram,
…
E por
diante, e por diante.
Teve
Grácia Temístocles famosos;
os Cipiões
a Roma engrandeceram;
E por
diante, e por diante. Era, com efeito, admirável! Aos dez anos de idade!
Francisco
de Morais, autor d'O Palmeirim de Inglaterra,
romance de cavalaria que não me canso de ler, secretário, conselheiro e amigo do
senhor meu marido, é homem bom e justo. Pena ser um tanto depreciativo, mas o seu
apurado senso de humor compensa em sarcasmo o que perde em despeito. E, nele, a
vontade de ser leal ao amo sobrepõe-se a tudo. O meu amigo, que tudo via com reserva
e desconfiança, não iria certamente concordar com o meu intento de contratar aquele
moço para mestre de Antoninho, o primogénito dos meus três filhos. Sempre que se
punha a exibir a pose de homem sábio e de extrema erudição, punha-me eu logo a recitar
em voz alta uma passagem do seu Palmeirim,
a que descrevia as damas de Paris, só para o ver corar de aflição: aquelas princesas e senhorias (...) jogando
ao alho saltando umas por cima das outras. Muitas vezes saltam mal e caem com os
focinhos para baixo Não posso dizer tudo senão que o padre para não ver
desonestidades remetia-se às moças que caíam, e cobrindo-as com o manto as ajudava
a levantar...
Pois
ainda que se deleitasse com damas saltando umas por cima das outras, e com o
manto do padre que as cobria, dizia e repetia o nosso conselheiro, torcendo o
douto focinho, que trazer Luís Vaz de Coimbra para Xabregas como mestre do primogénito
da Casa de Linhares sem lhe estudar minuciosamente a genealogia, a cultura e a
índole era poderosa afronta: pode ter grande talento, porém só talento não chega.
Afinal Vossa Excelência, senhora condessa de Linhares, é detentora do primeiro título
criado por El-Rei João III, é filha do tesoureiro-mor da Coroa, sobrinha do capitão
de Ceuta, e vosso marido, o senhor conde, embaixador do Reino junto da Corte francesa
de Francisco I e dona Leonor de Áustria. Para mestre do morgado António não há-de
servir qualquer um, senhora…
Desagradou-me
o que ouvi e não descansei enquanto não larguei a Crónica do Imperador Clarimundo, do nosso muito chegado João Barros,
para saborear os delicados sonetos e as oitavas que Luís Vaz escrevera à Casa
de Bragança. Sus! Que estoiro! Dizem que foi beber ao moderno Petrarca, que o Cancioneiro
Geral de Garcia Resende o sabe já de cor e que, ainda assim, lhe não basta, pois
que quer aprender com os italianos. Custa-me a crer. Que haja quem queira saber
das rimas dos italianos é coisa que me espanta..., até a mim, que me dou amiúde
com gente letrada e tenho uma das melhores livrarias do Reino. Só Sá Miranda os
segue e imita. E como é que Luís Vaz, que mal passou pelos bancos da
universidade, conhece Petrarca? E porém a imitação dos clássicos parece nele encobrir
um talento de verdadeiro homem de letras, talento que nele brota como água de fonte
levando-nos de enxurrada para um outro mundo.
Vinde
a ver a Teodósio grande e claro,
a
quem está oferecendo maior canto
na cítara
dourada o louro Apolo.
Minerva,
do saber, dá-lhe o dom raro,
Palas
lhe dá o valor de mais espanto,
e a
Fama o leva já de pólo a pólo.
Não se
esperava que Teodósio de Bragança lhe agradecesse, pois que para certa nobreza é
de bom-tom desprezar os homens comuns de duvidosos costados. Diz-se que também o
duque de Aveiro e o marquês de Cascais lhe encomendaram rimas. Fama de homem culto
e letrado, que conhece os segredos da mitologia como as estrelas no firmamento,
tem-na ele granjeado. Alguns reais vai certamente amealhando, mas nunca o bastante
para a vida devassa que dizem levar...» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.
Cortesia
de Odo Livro/JDACT