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Expansão
Portuguesa. Oriente
Coordenação
científica de João F. Marques e José Carlos Miranda
«O
rio da história é alimentado pelo caudal da memória que por via oral e escrita vai
deixando marcas ou vestígios do passado. Assim se caminha ao encontro do acontecido,
saciando a curiosidade e a sede de conhecer nunca satisfeitas, acerca do que
tem sido, na feliz designação de Marc Bloch, a vida dos homens no tempo. A globalidade
da rede multissecular da missionação europeia, que os descobrimentos ibéricos
iniciaram nos espaços continentais de que se assenhoreavam, continua a ser mina,
em aberto, imensa e sedutora. A pesquisa e a crítica de há muito a penetram como
focos de luz que, iluminando ignoradas e escuras galerias, permitem ver o fenómeno
em sua inteira extensão e labirínticos contornos nunca suficientemente explorados.
Nichos arquivísticos, nacionais e estrangeiros, têm atraído o interesse de investigadores
portugueses cujo aturado labor e ambição dos projectos fizeram jus a um
reconhecimento imorredoiro. Silva Rego, António Brásio e Artur Basílio Sá acodem
de imediato como cabouqueiros pertinazes de valia difícil de superar, tal a
grandiosidade dos acervos legados. Junta-se-lhes, na circunstância, a série
documental afim [Archivio Segreto Vaticano / Archivio della Nunziatura in
Lisbonna, Documentação Sumariada Referente ao Oriente] que a avisada e
benemérita Comissão dos Descobrimentos promoveu e subsidiou, quantum satis, agora oferecida ao
público. Não sendo os documentos compilados transcritos em sua inteireza
textual, as súmulas apresentadas de cada um não escamoteiam em nada o essencial
do conteúdo dos mesmos, o que possibilita a análise exploratória pretendida e
ajuizar do interesse da integral leitura do escrito. A metodologia seguida
obrigou, como de não difícil entendimento se percebe, a ingente e beneditina
colheita e cuidada sumariação de que resultou o repositório de cerca de cinco
milhares documentos expedidos pela Nunciatura de Lisboa e pelo Vaticano em cujo
Arquivo Secreto se encontram. O período a que pertence a maioria vai dos finais
da era seiscentista aos início do século último, no fundo cobrindo uma muito
longa duração, em que Portugal conheceu as Invasões Francesas, a instauração da
Monarquia Liberal e o advento da República, que correspondeu ao acentuado
declínio e agonia do Padroado. De resto, o pomo da discórdia incidia sobre
controvérsias e atritos jurisdicionais, graves como lamentáveis, entre a Nação
Fidelíssima e a Santa Sé através da Propaganda Fide, que superintendia a
evangelização missionária em terras da gentilidade onde habitava esse outro
diferente, rácico, cultural e religioso, a converter à fé católica. Aliás, tudo
se passava em espaços territoriais que sofriam inevitáveis mudanças de
soberania e governação política, pertenças da imensa Ásia, da Índia à China, e
da África meridional, do Atlântico ao Índico. Placas giratórias permaneceram até
quase nossos dias Goa e Macau que abrangiam áreas da Península Industânica,
África Oriental, Pérsia e sueste asiático, bem como o grande império Azul Celeste
até tocar a Coreia, aonde os missionários portugueses semearam cristandades. Na
órbita do Padroado, o contencioso com a Propaganda Fide, nos séculos XVIII e
XIX, aqui assinalado, objecto de escândalo, como seria natural, para os poderes
indígenas, enraizava não apenas no direito consuetudinário da apresentação de
bispos pela Coroa Lusitana, como na reivindicação de cristãos luso-descendentes
de serem identificados como portugueses, também por causa da provisão de
ofícios. Problemas afloram nesta documentação a merecer rastreio sistemático, referentes
à inculturação e aculturação religiosa, com a missionação jesuítica em destaque;
à penetração dinâmica da pujante instituição das Missões Estrangeiras de Paris;
aos vestígios da língua portuguesa nas orações, confissões auriculares e
catequese em territórios onde já havia desaparecido a soberania política; ao
papel desempenhado pela Nunciatura sediada no Rio de Janeiro durante a estada
da Corte e cativeiro de Pio VII por Napoleão Bonaparte, a rarefacção das marcas
culturais da presença lusa em irremediável declínio e à hostilidade dos missionários
estrangeiros ao episcopado do Padroado, apesar da procura de um modus vivendi com os agentes credenciados
da Sé Apostólica romana. As reformas introduzidas, no direito concordatório, quando
julgadas pertinentes e inadiáveis, no decurso da segunda metade de oitocentos
não travaram, como o Ultimatum de
triste memória pôs a nu, a decadência do Padroado. A expulsão pombalina dos
jesuítas e o banimento das ordens religiosas em 1834 já o haviam, aliás,
mortiferamente minado e a República acabou por consumar, não obstante o
veemente e dramático alerta de António Barroso que, como poucos, conhecia a
realidade. E quantos nomes dessa plêiade de missionários de apostólico zelo,
espalhados no que continuava a ser o Além-Mar português, não aparecem mencionados
neste repositório documental e incalculável valor histórico?
Mais:
esta mole informativa, pela sua variedade e abundância, potencializa ainda respostas
a um leque de outras questões que, postas por historiadores criativos, podem
ser continuamente trazidas à comunidade científica. Os anais da gesta
missionária portuguesa só se enriquecem, acentuemo-lo, com o escavar sem
desfalecimento, apesar dos horizontes de laicismo e indiferentismo, de memoriais
adormecidos em vários e nutridos tesouros como este que os investigadores desta
preciosíssima empresa em boa hora oferecem ao público estudioso interessado em
tão importante temática». In Prefácio de João Francisco Marques, Faculdade
de Letras da Universidade do Porto
In José
Eduardo Franco (Coordenação Geral) Arquivo Secreto do Vaticano,Archivio della
Nunziatura in Lisbona, Centro de Estudos Damião de Góis, Projecto financiado
pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2010, POCI 2010, Esfera do Caos
Editores, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-680-032-1.
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