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Cai
chuva do céu cinzento
«(…)
Sei, contudo, que um dia desci da montanha onde me tinha isolado e junto aos
vestígios dos meus passos lentos deixados no solo apareceram outros. Tinha seis
anos e olhei para trás e vi o Chevalier
de Pas. Soube, instintivamente, que não era ninguém para eu amar ou que nas
sombras me amaria, mas que sozinho na noite me faria companhia ao mesmo tempo
que tornaria maior o silêncio por trás de todas as portas cerradas. Eu não
precisava de bonecas para conceber intensamente essas figuras. Claras e
visíveis no meu sonho constante, realidades exactamente humanas para mim,
qualquer boneco, por irreal, as estragaria. Eram gente. Tinha seis anos, já
vo-lo disse. Por vezes, há acontecimentos de ontem que não me recordo ou que
são vagos, como o café que tomei ontem com o Almada, na Brasileira, a do Chiado,
claro, que a outra é uma Brasileira inferior, uma vil cova ou jazigo de
utilidades e propósitos artísticos que dá pelo nome humano de Brasileira do
Rossio. Por outro lado, há acontecimentos da minha infância que recordo com a
precisão de um relógio suíço, tal como o dia em que vi o meu Chevalier de Pas, sim, era meu tanto
quanto um sonho o pode ser.
Existem
também objectos que me fazem regressar a determinados lugares da minha vida
onde era meu hábito usá-los. Por exemplo, sempre que vejo um lápis Koh-I-Noor
regresso ao meu tempo de universitário em Lisboa, mas neste caso porque nunca
os usei. Não queria ser associado àquele molhe de gente comum, imberbe e sem
ideias próprias que os usava. Mas há o fumo de um determinado cigarro que já
fumei ou os vapores alcoolizados de uma bebida que em determinada época bebi
que me fazem, através dos seus odores leves, reviver o passado, o cheiro do
absinto faz-me sempre lembrar do Sá-Carneiro. Contudo, quando o cacau roça as
minhas pupilas gustativas, sobe por mim uma avalanche de recordações de
infância, tão devastadora quanto se aquela descesse a encosta habitada de uma
montanha. Não passa de uma pequena e simples barra de chocolate comprada na
Casa Suissa, mas à medida que desaparece na minha boca, aparece na minha
memória, alegre naquele momento pela recordação, o Chevalier de Pas, o meu soldado de chumbo que não era soldado nem
era de chumbo, mas que foi o meu companheiro de infância, tão fiel e presente
quanto o soldado de chumbo de uma outra criança.
A
barra de chocolate da Regina derrete-se sobre a língua e, indiferente a que não
fosse essa a marca da minha infância, misturam-se na minha boca o sabor amargo
do chocolate negro e das lágrimas que imagino chorar, misturando-se às memórias
de uma infância perdida e perfazendo uma amálgama que mastigo, acreditando
relembrar um passado feliz. E revejo o Chevalier
de Pas como da primeira vez. Ele disse-me que era um cavaleiro e ainda hoje
vejo rebrilhar nos meus olhos os pequenos anéis de ferro da sua túnica
metálica, cingida ao corpo por um cinturão castanho mais largo do que a minha
mão de criança e a maciez do chocolate suaviza a minha dor que vou trincando aos
poucos. Trazia um elmo, segurava-o entre o braço e a cintura. E tinha uma capa
vermelha. Disse-me que era o cavaleiro de pá. Não percebi imediatamente o seu
nome. Pensei que seria o Cavaleiro do Paço; mais tarde, quando o tornei a ver,
disse-me que era o Chevalier de Pá. Só depois de entrar na Saint-Joseph Convent
School, e aprofundar o francês que a mamã me ensinara ainda em Lisboa, é que
percebi o nome daquele meu amigo: Chevalier
de Pas. O sabor morno do chocolate esmoreceu como o de uma água que se
escoa pelo ralo e, entre os dentes sem nada para trincarem, desfizeram-se as
memórias.
Era
o Cavaleiro do Nada, disse, tentando segurar aquela memória com o mesmo
desespero de quem quer deter a água entre os dedos. Senti-me, nessa altura,
ainda mais próximo dele. Ele era nada como eu que nada era. Mesmo a memória do
gozo do chocolate desaparecera, restava-me a consciência amarga e absurda de
não ser nada. Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Nada
fica de nada. Nada somos. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos. Olhei
para eles como se estivesse a ver fantasmas saídos de uma espécie de inferno de
Dante: o meu passado. À parte Campos, de quem não me conseguia ver livre, como
podiam Caeiro e Reis estar aqui? Eu não tinha matado um com tuberculose e
exilado o outro no Brasil? Sempre achei impossível escrever na minha própria
personalidade; sempre dei por mim, consciente ou inconscientemente, a assumir o
carácter de alguém que não existe e através de cuja mediação imaginária escrevo.
Sentiria e pensaria eu através deles também? Entranhavam-se em mim como larvas
num cadáver. Só me deixariam quando me devorassem por completo, quando já não
existisse, quando passasse a não ser nada, o nada. Eram entes diversos em mim.
Percebi o seu intento, pretendiam que eu fosse diverso dentro deles. Enquanto
eu não estivesse completamente destruído, comeriam até ao último desperdício de
mim. Escarafunchariam até ao nada, mas isso eu já era». In Sónia Louro, Fernando Pessoa,
Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-674-1.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT