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Isabel de Aragão é por isso uma excepção na cultura bisonha do primeiro Portugal
durimínio. Ela traz nos dedos a luz doirada do Oriente, nos olhos as águas
mansas e azuis do Mediterrâneo, na pele o almíscar dos magos bíblicos, nos
lábios as palavras cultas da civilização. Também na fronte se estampavam as
alturas nevadas e impassíveis dos Pirenéus. A sua personalidade constrói-se à
parte de tudo aquilo que nos é familiar. Repele com horror a paixão da carne
que encontramos em Dinis e em Pedro; abdomina a violência sanguinária e a
cobiça desmedida de mando e de riqueza que o quarto Afonso mostra. No cadinho
do seu coração aragonês não se consome nem pitada daquele preparado de volúpia
e concupiscência que fez a atracção fatal de Inês e a ardência tórrida da
grande Leonor. O seu peito alvo de pomba não acrisolou qualquer apetite núbil.
Enquanto menina, na idade em que se toma gosto ao dedo no botão, menos se
estimou que se aborreceu, pondo em si, no corpo, um tipo de desgosto e de
repugnância que para sempre vedam, nela ou noutra, qualquer luxúria. É pois na
aparência Isabel de Aragão de todo alheia ao grande e apaixonado drama de Amor
que se representou no Portugal do século XIV. E no entanto Isabel faz parte
deste tempo como a Lua nova, mesmo ausente, faz parte do céu dos astros. Está
lá, mesmo que ninguém dê por ela. Assim Isabel é a esposa de Dinis, a mãe do
quarto Afonso e a avó de Pedro. Foi ela a fundadora de Santa Clara, na margem
esquerda do Mondego, onde a tragédia da Morte de Inês depois se desenrolou em
acro único. Três ou quatro décadas, não mais, separam a instalação de Isabel de
Aragão na nesga de areia do Mondego e a decapitação de Inês no mesmo lugar. Que
peregrina relação pode ligar estes dois factos e estas duas mulheres, pergunto-me.
Basta porém o liame para tornar Isabel de Aragão um elo intocável da história
de Pedro.
Mas
há mais. Foi Isabel de Aragão que habitou pela vez primeira a despretensiosa
casinha de pedra calcária da Serra-del-Rei, a montante da Atouguia, onde depois
do desaparecimento da vestal de Alenquer, Pedro e Inês, encontraram o Éden
terreal numa finisterra só por eles povoada. Esse mesmo espaço será depois
da tragédia de Santa Clara o refrigério desejado pela agónica solidão de Pedro.
O único bem que ao infeliz restava depois do cataclismo inesperado de Coimbra,
que bastou para lhe turvar a clareza e lhe roubar para sempre parte da
mioleira, fazendo dele um contumaz da justiça, era a saudade. Compreende-se.
Não é a recordação o único conforto real do homem esbulhado do Paraíso ou da Infância?
Está visto que sim. Talvez por isso a história de amor entre Fernando e Leonor
não se entenda sem esse mesmo espaço finistérrico.
Dinis
e Isabel, Inês e Pedro, Fernando e Leonor três gerações, três casais, de avós a
neto, que se substituem na Atouguia, ao pé da ilha de Peniche, num espaço que
parece estar à deriva no coração do mar. O caso de Inês é trágico, com as arcas
de Alcobaça ali tão perto, mas o de Isabel, Primavera de tudo, é inocente, como
o de Leonor é triste e ardente, como o fim tem de ser. Um fio liga as três
mulheres: o sacrifício em Isabel, a morte em Inês, a abdicação
em Leonor. Isabel de Aragão, além de sexta rainha de Portugal, foi canonizada
pela Igreja no século XVII, muitos séculos depois de viver. É pois duma santa
que falamos, uma santa do calendário romano. Mas as voltas que o mundo dá, para
fazer um santo ninguém as entende. Tais meandros são tão incognoscíveis como os
mistérios dum céu estrelado. Tão contraditória é a santidade que procurá-la é o
primeiro passo para a perder. Os santos não se reconhecem como santos. Que
irrisão delambida e que grosseria um santo que ao mundo se apresentasse como
santo. Têm razão os que afirmam que o mais verdadeiro e o mais belo dum santo
são os seus pecados. E como pecador irremissível se encara sempre um santo
autêntico». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo,
Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT