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Nunca me falavam dele, até que um dia um frade não muito velho, olhando em volta
a ver se nos espreitavam, me sussurrou ao ouvido: pchiu! Não dissesse nada! Aquele
medalhão era uma caixinha de ouro que continha uma relíquia de São Pantaleão...,
mas logo assaltado não sei por que medos se afastava de mim, apressado: por todos
os santos! Não revelasse a quem quer que fosse que me tinha dito aquilo... Nessa
noite quase não dormi, a pensar na ligação que poderia haver entre um tal São
Pantaleão e mim. Resolvi perguntar àquele frade, no dia seguinte, quem era tal santo.
Procurei-o com ansiedade mas em parte nenhuma o encontrei, na capela, no
refeitório, na cozinha. Era-me defeso ir bater à porta da sua cela e assim perguntei
por ele a um irmão noviço que encontrei na horta do convento. Que o frade de que
falava havia sido transferido pelo superior para um convento distante. Qual? Não
sabia mais nada, não perguntasse mais nada... e curvava-se a amanhar a terra em
redor dos pés das couves. Na altura não dei importância ao facto. Nos dias que se
seguiram, na minha inocência tornei-me extremamente indiscreto, pois perguntava
aos frades, ao catequista, aos monitores que encontrava se sabiam dizer-me quem
fosse São Pantaleão. Nenhum deles sabia, quase todos ficavam embaraçados e alguns,
depois de uns segundos de hesitação, voltavam-me as costas sem nada
responderem. Nessa altura eu não podia entender que aquela era, para homens de religião,
uma estranha ignorância e um invulgar comportamento. Grande dificuldade tive,
portanto, em saber quem era esse santo e, como com a dificuldade aumentasse o interesse
e a desconfiança, tornou-se demasiado óbvia a minha obsessão, de maneira que não
tardou nada fosse levado por um fradelo franciscano para um sítio diferente.
Elaboro hoje, sem dificuldade, o pensamento de quem tinha o meu destino nas mãos:
um meio grande, populoso, movimentado, era a escolha excelente entre todas. Obviava
a duas necessidades, a de melhor me misturar com os outros e a de me distrair das
minhas preocupações. Assim teriam pensado e assim se fez, mas sem os resultados
esperados, porque a mim doravante já ninguém me podia deter, o processo estava iniciado,
eu partia à procura de mim próprio. Encontrei-me, assim, em Setúbal, burgozinho
agradável, com suas colegiadas de frades, seus paços senhoriais, suas lindas igrejas
e as pracetas onde desembocavam ruas aconchegadas cheias do movimento dos mercadores,
a beira-rio tão animada da faina dos pescadores, o largo estuário em que por vezes,
rodeada pelos barcos de pesca, se via fundeada uma nau de el-rei, de partida para
as Índias. O teor da minha vida não variou muito: a maior parte do tempo era
passada no aperfeiçoamento da leitura e da escrita, na catequese, no estudo da música,
do canto, e por essa ocasião iniciou-se a aprendizagem do latim. Um vago
pressentimento de que a minha mudança de terra estava relacionada com as perguntas
que eu fazia sobre São Pantaleão tornou-me mais prudente. Resolvi disfarçar a curiosidade
e fingir que a ideia se me tinha varrido da cabeça: não fiz mais alusões ao santo,
na presença de pessoas nunca tocava no medalhão ou sequer reparava nele. Senti que
a vigilância em volta de mim afrouxava, mas por meu lado jamais estive tão
atento, a espreitar a mais pequena circunstância ou probabilidade de vir a saber
o que queria. Um dia, sozinho, tentei abrir o relicário: havia de facto, por detrás,
uma espécie de tampazinha redonda e um fecho muito simples mas impedido de ser aberto
por um pingo de chumbo. Uma pedra resolveria o assunto. Ainda cheguei a pegar nela,
mas receei amolgar a caixa e que isso fosse notado. Desisti, decidido a aguardar
melhor oportunidade.
Custou-me
muito a adaptar-me aos novos companheiros, aos novos mestres. À medida que crescia
cada vez me era mais penoso. Sentia-me isolado, mais só, uma solidão e um isolamento
todo de dentro, que me apartava do mundo exterior até quando esse mundo se apresentava
ao derredor barulhento e buliçoso, um solitário
andar por entre gente como por motivos bem diferentes e em desigual idade dizia
um poeta meu amigo que Deus tenha. Criava então o meu próprio mundo dando vida às
coisas, falando com elas e fazendo-as falar comigo. Brr!, dizia eu à água gelada do Inverno, quando de manhãzinha, no
lusco-fusco, tinha de lavar a cara. Não és nada suave. Quem te pôs assim tão
má? Mas nas horas de calor e de sede: que boa és, amiga! Deixa-me beijar-te.
Sentia prazer em dizer isto, deixa-me beijar-te, mas eu não conhecia beijos a não
ser de ver alguns dos meus companheiros a beijarem as mães e por elas serem beijados
quando iam de férias... Falava com o pão, com a fruta das árvores, com os bois da
quinta, Eh, Manso! Eh, Pintado!, com os cães, com os coelhos e as galinhas... Se
dava uma topada numa pedra, saía-me da boca um palavrão daqueles que nós os putos
surpreendíamos aos adultos ou aprendíamos uns com os outros e gostávamos de
dizer pela calada para nos sentirmos homenzinhos. Porra! Mer…! Filha da…, saltibérria!
Ah! Belas palavras universais que arrostavam com o tempo e com o espaço, com as
modas e os preconceitos! Sabiam-nas os príncipes e os vassalos, a taverna e a corte,
e os marinheiros, quando em terras longínquas das Índias precisavam de
organizar seus rudimentares léxicos para poderem dar-se a entender e entenderem,
não se esqueciam de as incluir... Dirigia impropérios a tudo o que me desagradava.
Depois, malandreco que era, divertia-me todo na confissão, mea culpa! Mea culpa!
Pecar por pensamentos, palavras e obras..., a ver o padre corar..., e no meu íntimo,
quando ele me dava a absolvição, eu absolvia-o também do pecado de maus pensamentos...
Falava com os livros, com a pena e o papel. Mas isso era outra história». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT