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«A
primeira vez que o Estado subiu a serra foi na pessoa de um português de alta
estirpe, amigo do rei, íntimo da corte e agente graúdo da empreitada mares
afora que Portugal elegera como seu ramo prioritário de negócios. Martim Afonso
Sousa, este o seu nome. Não que algum europeu não o tivesse feito antes. É
certo que pelo menos um estava mais do que acostumado ao percurso: um certo
João Ramalho, do qual se ouvirá falar, nesta história, tanto quanto de Martim
Afonso, ou mais. Mas quem era esse Ramalho? Medido pelos valores do Velho
Mundo, um bruto, quase no mesmo nível de selvageria dos selvagens no meio dos
quais vivia. Já Martim Afonso, comandante da mais importante expedição enviada
à terra desde Pedro Álvares Cabral, tanto representa a situação, o status
quo, o establishment, que os póstumos capricharam em premiá-lo com a
melhor compleição física possível, e vesti-lo com as melhores roupas. Veja-se o
quadro que representa sua chegada a São Vicente, obra de Benedito Calixto,
pertencente ao acervo do Museu do Ipiranga, em São Paulo. Afonso apresenta-se
no rigor da moda aristocrática do período, um gibão verde-claro, que se
prolonga num saiote até metade da coxa, e sobre essa refinada peça, a principal
do guarda-roupa masculino de então, uma capa branca e rosa. O todo é suave sem
deixar de ser viril. Na cabeça, o chapéu achatado, tipo boina, que era o mais
fino que se podia ter. E pendurada ao pescoço a cruz de malta, símbolo do poder
português. Talvez não fosse o melhor traje para descer à praia. Talvez não
tenha sido exactamente assim que Afonso se apresentou. Em todo caso, o pintor
fez bem em representá-lo dessa maneira. Serve para que não reste dúvida de que
se trata do chefe, do dono, do senhor, tanto mais que o outro lado é composto
pelos brutos índios nus. Benedito Calixto, nascido no litoral paulista,
conhecia bem o episódio que transpôs para este quadro. Além de pintor, era um
pesquisador da história paulista. Por isso, intriga ainda mais as feições que
atribuiu aos índios, carregadamente japonesas. Japoneses e rústicos, os índios
deste quadro parecem samurais dos filmes de Akira Kurosawa.
Martim
Afonso nasceu em 1500, mesmo ano da expedição de Cabral, num dos melhores
berços disponíveis no Portugal daquele tempo. Tanto o avô como o pai tinham o
título de senhor do Prado. A este, o pai, Lopo Sousa, acrescentou o de senhor
de Pavia e Baltar. O pai destacou-se como alcaide-mor, quer dizer, chefe
militar, de Bragança, e aio do duque de Bragança, nobre mais importante de
Portugal, tanto que a família Bragança, um século e meio depois, acabaria
entronizada como a dinastia reinante. Martim Afonso foi mais longe ainda que o
pai. Ele e o primo, António Ataíde, despontaram para a vida pública como aios
do príncipe herdeiro, João, o futuro João III, filho do rei Manuel I, dito o Venturoso. Aios e grandes amigos. Tão
próximos do futuro rei, e tão influentes junto a ele, que Manuel I,
considerando que lhe lançavam uma sombra sobre a relação com o filho,
afastou-os do serviço. O orgulhoso Martim Afonso, que contava apenas 17 anos,
mas já mostrava um carácter fantasioso e opiniático, segundo um testemunho,
optou em resposta nada menos do que pelo exílio. Foi viver na Espanha, onde a
sorte continuou a favorecê-lo. Durante algum tempo viveu em Salamanca, vindo a
casar com a filha de um nobre local, Ana Pimentel. Como soldado, pôs-se a
serviço de Carlos V, o Habsburgo que
não apenas detinha as coroas da Espanha e da Áustria, mas também era o titular
do Sacro Império Romano-Germânico, condição que, entre outras ninharias, lhe
dava direito à Holanda, a algumas cidades italianas e aos vários Estados
alemães. Martim Afonso combateu ao lado dos espanhóis de Carlos V em uma de
suas várias guerras contra a França de Francisco I. E agradou, a julgar pelo
que ele próprio deixou escrito, num curto texto autobiográfico, a Brevíssima
e Sumária Relação de sua vida. Ali, afirma que Carlos V elogiou-o em
público, e pediu-lhe que permanecesse em seu serviço. Afonso respondeu que
muito lhe honrava a deferência do rei espanhol, aliás, imperador, como era
chamado, mas que tinha outro rei por seu senhor, alguém com quem se criara e
que por outro nenhum deixaria. Ele se referia a João III, o amigo de
infância, apenas dois anos mais novo, e agora já alçado ao trono português.
Manuel I morrera em 1521. João, embora não tão de imediato, chamou Afonso de
volta. Afonso acedeu à convocação. João III é o rei que vai desencadear a,
digamos, Operação Brasil. E é esta a
primeira missão de vulto que incumbirá ao velho companheiro. No reinado de Manuel
I, o interesse de Portugal fixara-se em outras partes, ou outra parte. Quase
com exclusividade estivera voltado para a Índia, cujas especiarias lhe
propiciavam um rendoso comércio. O governo de Lisboa dignava-se agora a olhar
para as terras descobertas a ocidente pelo motivo de sempre: a cobiça, o brilho
do ouro. Operação Brasil? Antes,
seria Operação Sul do Brasil. Ou, com
mais amplitude, Operação Cone Sul,
para usar nomenclatura revista e actualizada. Ou, para ir directo ao ponto, Operação Prata. Eis o que interessava: o
rio da Prata». In Roberto Pompeu de Toledo, A Capital da Solidão, 2003, Editora
Objectiva, Prisa Edições, 2012, ISBN 978-853-900-370-9.
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