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António não desistiria da luta e Filipe sabia disso. O novíssimo rei de
Portugal chega a anunciar publicamente uma recompensa de 80 000 ducados de ouro
a quem capturasse aquele agitador solitário, mas tinha ainda de se haver com outro
rival: o já citado fantasma do rei que desaparecera, três anos antes, em
Alcácer Quibir. Com o povo a suspirar por Sebastião, Filipe faria trasladar, de
África para o Mosteiro dos Jerónimos aquele que era, alegadamente, o corpo de o Desejado, mas o esforço e o dinheiro
despendidos de nada serviram e nada calaram. Nada garantia que aquele cadáver
que até hoje jaz num faustoso túmulo de mármore não muito longe dos de Camões
ou Vasco da Gama fosse, com efeito, o de Sebastião ou de outro infeliz
qualquer, que nunca tivesse sido rei ou sequer português. Nenhum teste foi
feito na época ou desde então. Nasciam o mito e o mistério do sebastianismo.
Desprezá-los é não entender Portugal. Naqueles mesmos dias, aconteceria, aliás,
um fenómeno curioso: o aparecimento de umas quantas figuras que reclamavam ser,
nem mais nem menos, o próprio Sebastião. Alguns, consoante os dotes dramáticos,
ainda conseguiram pôr umas multidões a acreditar neles. Quase todos acabaram presos.
Um foi enforcado.
A
guerra não terminara. Ainda não. Logo em 1581, António I, que tinha procurado
apoio em França e Inglaterra, ia descobri-lo, afinal nos Açores. Ciprião
Figueiredo Vasconcelos, corregedor na ilha Terceira, era um daqueles homens
para quem Filipe não passava dum usurpador. Para Ciprião, o rei de Portugal, no
exílio ou não, continuava a ser aquele que o povo aclamara em Santarém. No
início do ano, a ilha de São Miguel tinha tomado partido, conforme declaração
da Câmara Municipal de Ponta Delgada, pela causa de Filipe de Espanha. Em
consequência disso, fora nomeado para governador-geral dos Açores Ambrósio Aguiar
Coutinho, ao qual se seguiria Martim Afonso Melo e cuja principal tarefa seria
demover Ciprião Figueiredo. Revelar-se-iam vãos, contudo, os esforços do governador:
rapidamente Ciprião o obrigou a regressar a São
Miguel,
fazendo-lhe notar que toda a ilha Terceira, e é provável que tenha sublinhado toda,
estava por António I.
A 25
de Julho, entrando pela baía da Salga às primeiras horas da manhã, uma força de
1000 espanhóis comandada por Pêro Valdez viria determinada a fazer Ciprião e os
seus terceirenses engolirem a ousadia, mas uma furiosa bateria de gado bovino
mostrar-se-ia insensível perante os seus argumentos. Empoleirada num pequeno
muro de pedra, confundida com uma rainha no alto da muralha do seu castelo, Brianda
Pereira balançou e gritou até ao fim do combate: estamos por Dom António! Aqueles
que o gado poupou não tiveram a mesma misericórdia da parte do exército de
populares. O mar levou outros que se afogaram pesadamente, dentro das
armaduras, na tentativa de fuga. Alguns, poucos, conseguiram alcançar os
galeões e viver para regressar a Espanha e contar a história. Quando o silêncio
se abateu sobre a Salga, a espuma do mar deixava um rasto encarnado nas
rochas... Custava olhar aquele retrato sanguíneo do fim da batalha, mas a
vitória fora completa. Sepultados os corpos caídos do vale à baía, o governador
Ciprião marchou até Angra do Heroísmo, arrastando as bandeiras dos rivais. A
cidade celebrou-o como a um herói antigo. Pêro Valdez faria chegar a Filipe o relato
pormenorizado dos acontecimentos e a vingança viria mais cedo ou mais tarde,
mas, por agora, era tempo de festejar orgulhosamente o crime de rebelião». In
Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas,
2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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