Cortesia
de wikipedia e JDACT
«(…)
Então, repentinamente, Gonçalo Pena dizia a frase em inglês, espanhol e
francês: This stencil bleu no es amarillo but noir. Meu pai ria até às
lágrimas, Gonçalo Pena conservava-se de pé, imperturbável, o professor perdia a
cabeça e, como não podia fazer mais nada, punha o meu pai no olho da rua, com
falta de castigo. Gonçalo Pena continuava a apertar comigo, enquanto o
Armandinho, estimulado talvez pela bordoada que tinha dado em Zeca Sucateiro,
atacava mais uma vez pela esquerda. O antigo colega de carteira do meu pai era,
como já disse, um homem alto, elegante, vestindo sempre do melhor, parecia um
lorde. Dizia-se que era maçon e se entregava a práticas secretas, de espada e
avental. Vivia ora em Alma ora em Lisboa, no Hotel Borges. E tinha dois
pecados: conspirações e mulheres. Já ia na vigésima governanta. Recrutava-as
por anúncio no Diário de Noticias. Elas vinham ao hotel e ele fazia a triagem.
Às vezes aparecia em Alma com dois ou três oficiais reformados ou
compulsivamente passados à reserva. Reuniam-se com a minha avó e falavam por
subentendidos. Ficava no ar a expectativa próxima do levantamento, da pólvora e
da revolução. Verdade que Gonçalo Pena tinha sido um dos heróis das
Trincheiras, quando, por altura da Traulitânia, os republicanos de Aveiro
aguentaram o avanço dos monárquicos que vinham do Norte. Foi a batalha mais
sangrenta da República e nela morreu mais gente do que em todas as outras
revoluções, incursões e contra-revoluções: trinta e quatro mortos, tal foi o
preço da resistência republicana. Mas os monárquicos não passaram.
Já
ele me pegava no braço para me levar, quando o Armandinho, verdadeiramente de
cabeça perdida, finta o defesa direito (meu pai dizia béque), corre até à linha
e não se sabe, não se saberá nunca se com intenção ou sem querer, enfia a bola
pelo ângulo superior direito e empata a partida. Zeca Sucateiro não se
aguentou, esqueceu-se da porrada e tentou entrar no campo para o abraçar. Mas o
Armandinho ainda estava a ferver e foi preciso segurá-lo para ele não assentar
mais um tento nas ventas de Zeca Sucateiro. Exasperado com a minha recusa,
Gonçalo Pena, que também tinha dado um pulo com o golo de Armandinho, foi
parlamentar com o meu pai. Que mal o ouviu e acabou por ceder. Ó pá, isto agora
está no papo, vai lá que elas ficam todas contentes. Estávamos neste trinta e
um de boca quando Neca Pereira, defesa central do Beira- Rio, que jogava de
lenço branco a sair dos calções, resolveu ceifar o avançado centro do Vista
Alegre em plena grande área. Penalti! Todo o campo emudeceu. O próprio Gonçalo
Pena deixou de insistir, dir-se-ia que também ele já esquecido do comício. -
Equipa de mer…, disse. Eu não gostei. Podem
não jogar nada, mas são os nossos. Tens razão. Não jogam nada, mas são os
nossos.
O
árbitro apitou, o avançado do Vista Alegre correu para a bola, fez uma finta de
corpo, Zamora não se deixou levar, a bola foi para o lado esquerdo e ele
defendeu. Foi o delírio. Só Gonçalo Pena, passado o entusiasmo, voltou à carga.
Mas já o Beira- Rio estava de novo ao ataque. Então explodi: não vou, eu sou
monárquico, não quero ser republicano, eu sou monárquico. E foi como se tivesse
dito uma blasfémia. Gonçalo Pena ficou branco, abriu muito os olhos e não
esteve com cerimónias: pregou-me uma estalada e agarrou-me pelo braço. E lá
fui, arrastado. Entretido a dar instruções para dentro do campo, o meu pai nem
se apercebeu. O comício era no Cine-Teatro, nome pomposo de um barracão que
ficava entre a Câmara e a cadeia, já na parte baixa de Alma. Aos poucos fomos
deixando de ouvir o barulho do Campo de São Cristóvão e começaram a chegar até
nós os ecos do comício. Caminhávamos apressados, sem falar. Gonçalo Pena segurava
a minha mão com força, com medo talvez que lhe escapasse e voltasse para o
jogo. Havia uma pequena multidão à porta do Cine-Teatro. Quem manda?,
perguntava um. E os outros respondiam: Salazar, Salazar, Salazar. Provocadores,
exasperou-se Gonçalo Pena, ao ver aquele grupo de fato domingueiro,
arregimentado nas redondezas para vir perturbar o comício da oposição. Vinha de
lá de dentro a voz de Aurélio Silveira, ex governador-civil de Aveiro durante a
Primeira República, talvez o mais íntimo de todos os companheiros de Geraldo
Pais, meu avô. Era uma espécie de João Semana, não usava estetoscópio,
auscultava com a orelha e diziam os outros médicos que ninguém tinha o ouvido
de Aurélio Silveira.
Percorria
as serras a cavalo, da Urzeira ao Caramulo. Republicano avançado, sonhava com
uma nova revolução francesa e com a igualdade universal. Não cobrava aos
pobres, levava-lhes remédios, chegava onde ninguém mais, contentava-se que lhe
dissessem onde havia lebres, que depois caçava a cavalo, com galgos. Ele e a
mulher, a quem todos chamávamos Tia Matilde, pequena, magra, o cabelo muito
preto, os olhos muito azuis, capaz de andar vinte quilómetros a pé, faziam e
distribuíam A voz de Alma,
jornal republicano e independente. Sempre que o censor, um oficial reformado
que morava do outro lado do rio, lhe cortava um artigo, Aurélio Silveira
esperava-o em cima da ponte com o seu pingalim de caçar lebres a cavalo. E já
se sabia que o coronel não viria à vila tomar café. Com mais corte, menos
corte, A Voz de Alma lá ia levando o
seu recado. E até o meu pai, que não era republicano mas tinha um fraco pelo
Dr. Aurélio, colaborava com artigos sobre caça e outros desportos, sendo mais
que certo que todos os anos, na data da morte do meu avô Júlio Faria,
considerado o maior desportista do seu tempo, dedicava um artigo à memória do
pai, recordando, entre outros feitos, aquele célebre torneio de tiro aos pombos
em que meu avô, apesar de monárquico e membro da Casa Real, ousara derrotar o
rei Carlos I, ganhando a Taça Eduardo VII.
Provocadores,
gritava Gonçalo Pena fora de si, ele que, segundo meu pai, era homem de poucas
ameaças e chapada pronta. À porta do Cine-Teatro havia um coro que procurava
abafar com seus gritos os oradores. Quem manda?, perguntava, com um sorriso
sacana, um tipo de bigodinho fino e olhos achinesados. E o grupo respondia:
Salazar, Salazar, Salazar, Carmona, Carmona, Carmona. Aquilo, não sei porquê,
se pelas vozes, se pelas caras, se pelo todo, fazia-me um arrepio pela espinha
acima. Olhava-se para eles e percebia-se que não eram dos nossos. E à terceira
vez que o sacaninha perguntou Quem manda?, Gonçalo Pena respondeu-lhe: a pu…
que te pariu. Foi um ver se te avias. Os dois primeiros, ainda Gonçalo Pena os
derrubou. Mas eram muitos. Consegui furar e entrar na sala. Lá estava a minha
avó, toda de negro vestida, com uma jóia de brilhantes na gargantilha. Ao lado
a minha mãe, ostentando, ao peito, as armas da família do meu pai. Assim que me
viu, Aurélio Silveira interrompeu o discurso e apontou na minha direcção. Toda
a sala se levantou a bater palmas, era como se tivesse chegado o menino Jesus.
A muito custo consegui balbuciar ao Dr. Aurélio o que se passava. O nosso amigo
Gonçalo Pena está lá fora a ser agredido por um bando de provocadores a soldo
do regime. Mas não vamos responder a provocações, a nossa força é a razão. Qual
quê? Em menos de um fósforo, metade da sala estava cá fora a despachar o do
bigodinho e acompanhantes». In Manuel Alegre, Alma, Publicações dom Quixote,
1995, ISBN 978-972-202-668-0.
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