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«Abram bem os olhos. Leiam devagar e com
atenção o que vou contar. Não tenham a ilusão de tudo compreender antes de
chegar ao fim. Acima de tudo, por caridade, não voltem atrás. Sei que se
olharem duas vezes a mesma página nada será igual. É assim. Eu própria se
tivesse de contar duas vezes esta mesma história não seria igual. Nem a
história nem eu, entenda-se. Se quisesse dizer-vos porquê, isso agora, levaria
demasiado tempo e exigiria demasiadas palavras. Para ser totalmente honesta, o
meu principal problema é esse. Falta-me o tempo. E mesmo se tivesse ainda
direito a uma segunda vida, ou a uma terceira, não seria suficiente, não
haveria espaço nem palavras em quantidade para dizer tanto mal. Sim, é disso
que vos quero falar. A morte adianta-se todos os dias um bocadinho, até nos
encurralar num momento qualquer, num sítio qualquer, numa qualquer situação.
São ínfimos os que sabem com antecedência quando vão morrer. Eu faço parte
desse pequeno punhado de privilegiados».
«Em
forma de comunicado, estas palavras pareciam ter estado sempre ali, à espera de
se revelarem. Foi um encontro fortuito, no subsolo do primeiro apartamento que
aluguei quando cheguei a Paris. Era um volume solitário, todo mofo e pó, numa
caixa de madeira de articulações lassas, visivelmente destinada a viajar, dada
a perfeição dos nós que a apertava. Numa das faces pendia agrafada a seguinte
mensagem, abrir com cuidado. Um convite à tentação, que confirma o meu pior
defeito ou virtude, quem pode julgar, a curiosidade. No interior, mais de uma
centena de páginas artesanalmente compostas formavam um livro. Esta descoberta
ocorreu em Dezembro de 2007. O volume, sem título, assinado por Laura Paraíso,
não tem data, mas quem o copiou, JMC, deixou anotado na primeira página Agosto
2005, A ideologia do terror, o mundo vive no medo. Dois anos separam
estes dois acontecimentos, e são ainda muitas as perguntas que me assaltam o
espírito sobre a identidade de Laura e de JMC, e sobre o enigma dessas linhas.
As tentativas feitas para chegar aos seus criadores esbarraram num espesso
mistério de ficheiros, ilegíveis e amarelecidos, da complexa administração do
Estado. Desisti dessa busca, mas não abdico da procura do segundo manuscrito,
muito mais pelo desejo de me apoderar dessas novas palavras, que pelos segredos
promissos desse futuro incerto. Por agora, deixo-vos aqui o livro de Laura,
resgatado da teia da web por JMC. In Paris,
28 de Maio de 2008, A. Miranda
«Abram
bem os olhos. Leiam devagar e com atenção o que vou contar. Não tenham a ilusão
de tudo compreender, antes de chegar ao fim. Acima de tudo, por caridade, não
voltem atrás. Sei que, se olharem duas vezes a mesma página, nada será igual. É
assim. Eu própria se tivesse de contar duas vezes esta mesma história não seria
igual. Nem a história, nem eu, entenda-se. Se quisesse dizer-vos porquê, isso
agora, levaria demasiado tempo e exigiria demasiadas palavras. Para ser
totalmente honesta, o meu principal problema é esse. Falta-me o tempo. E mesmo
se tivesse ainda direito a uma segunda vida, ou a uma terceira, não seria
suficiente, não haveria espaço nem palavras em quantidade para dizer tanto mal.
Sim, é disso que vos quero falar. A morte adianta-se todos os dias um
bocadinho, até nos encurralar num momento qualquer, num sítio qualquer, numa qualquer
situação. São ínfimos os que sabem com antecedência quando vão morrer. Eu faço
parte desse pequeno punhado de privilegiados. Sei que estou perto da eternidade
porque sinto o silêncio do fim. Sem silêncio não pode haver eternidade. A morte
avança dissimulada, sinto-a rondar a casa onde fui feliz com Jean. É Primavera.
O perfume do lilás, que ele plantou quando aqui chegámos, entra pela janela
aberta do nosso quarto. Duras, hoje doem-me as cruzes como pedra. O meu corpo
já não suporta a cama. O meu corpo já não suporta nada, desde que ela nos
separou. Não, não foi ela que decidiu. A morte esperava por ele, mas ele
antecipou-se. Entregou-se antes do tempo. Não pensem que foi uma rendição, não
ele. Jean nunca capitularia diante das ameaças da morte. Ele tinha apenas os
dias contados, como de resto, qualquer um de nós. Ele ganhou porque lhe trocou
as voltas. A morte é zarolha e como eu, uma velha ressequida em fase terminal.
Mas, também eu hei-de ser capaz de trocar-lhe as voltas. Vou despachar-me. Deixem
que vos conte.
O
Mal não tem regra nem medida. Surge e toma os espaços vazios da nossa alma. Mas
só agora o sei. Tudo é possível, garanto-vos. Eu vivia de fundamentos escritos
com o sangue invisível dos outros, e alimentava uma certa imagem do mundo, essa
mesma que todos vemos nos jornais da manhã e nos blocos noticiosos das
televisões. Quem saberia que, subliminarmente, todos os mortos com quem de
perto ou de longe cruzei o meu olhar, viriam ocupar-me a memória para sempre,
com a pretensão, julgo eu, de serem vingados de tanta tirania. A realidade
construída pelos Media chama-se
actualidade, mas real é apenas uma certa parte do seu conteúdo, só que, então,
eu também não sabia. Outros, como eu, tomaram por verdade irrefutável tudo o
que vinha escrito nos jornais e ainda o que era contado nas rádios e nas
televisões. Inicialmente manter-me a par dos acontecimentos que influenciavam o
mundo parecia-me uma abertura necessária para melhor o compreender, e tornou-se
um hábito. Com o tempo, veio uma certa dependência, e não tardou que fosse
habitada por uma permanente obsessão de querer tudo saber, uma bulimia
incipiente que se agravou e favoreceu o despertar de uma nova moral, aferrada
no desejo de revolta e de vingança contra tanta vilania». In Ana Miranda, O Diabo é um
Homem Bom, Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN
978-989-697-552-4.
Cortesia
de EChiado/JDACT