segunda-feira, 4 de julho de 2016

Memórias de Agripina. Seomara V. Ferreira. «Achava-se no fim da vida, minado pela doença. Aliás, a sua saúde fora sempre frágil desde criança. Louro, pálido, de pequena estatura, mas de formas harmoniosas, belos olhos azuis…»

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«(…) Habituei-me há muito às mortes, às violências, às injustiças do mundo. Maior que todos os vícios existe um: o da abstenção. O da abstenção sem grandeza de ânimo. Não é esse o meu intuito. Neste preciso instante eu recuo na sombra da minha morte porque, tal como os estóicos, eu decidi abandonar o mundo porque ele já está morto para mim. Não vale a pena lutar por isto. Seria um acto de cobardia. Esta foi a escolha que fiz. Sim, de livre vontade. Nem sequer é necessário experimentar o gume afiado da adaga ou a rapidez misericordiosa do veneno letal. Deixo o último acto do meu destino a Lúcio, a Nero, a meu filho, ao Imperador. Esta forma de abstenção é justa. Tenho direito a ela, a abandonar o palco agora que o grande teatro está vazio e eu completamente só. Em certa medida consegui cumprir o plano do meu destino, pelo menos parte dele. Hoje abandono o mundo e apetece-me dizer como meu bisavô no derradeiro instante: aplaudi, senhores. Não representei bem, até ao fim, a farsa da vida? Se a peça vos divertiu, aplaudi, senhores, aplaudi! Apesar de lhes ter exilado a mãe, Augusto foi sempre extremamente zeloso e meigo para os netos que representavam os seus mais caros ideais. Orgulhava-se de minha mãe, da sua castidade, da sua fidelidade, da sua fertilidade. Querida Agripina, desejo que estejas bem e que chegues de saúde e feliz junto de teu Germânico. Esta carta, por exemplo, foi escrita na véspera dos Idos de Maio de 767, pouco tempo antes da morte do Imperador.
Nela, meu bisavô avisava que enviava meu pequeno irmão Caio para a companhia dos pais e juntamente um bom médico da sua casa, um liberto grego, para o caso de uma emergência. Meu pai achava-se, portanto longe de Roma quando morreu o velho Imperador. De certo modo com ele morria uma época, um século. O novo século iniciava-se nas mãos de meu tio e avô por adopção Tibério e com a segunda grande revolta das legiões na Panónia e na Germânia e foi nesse vasto, bárbaro e gelado espaço da Germânia, durante o seu duro Inverno, que eu entrei na história, num dos recantos desta imensa cena onde se joga o destino do mundo e que é o Império.

Em memória
O mês de Agosto desse longínquo ano de 761 foi um dos mais quentes que a memória dos velhos registou. A corte, como era tradição desde que Augusto foi o senhor dos nossos destinos, achava-se perto de Nápoles. A baía de cor azul profundo, a costa recortada de casario branco, os jardins tratados das villas acolhedoras e a majestosa imagem do Vesúvio sobrepondo-se a toda a paisagem, constituíam um dos grandes prazeres do velho Imperador. Adorava, rodeado pela família e amigos, gastar os dias calmosos do Verão ora em Baies, ou em Bauli, ora em Herculanum, ora em Puteoli e em Capri, que ele comprara à cidade de Nápoles, em qualquer das suas belas propriedades da Campânia, como a grande maioria dos altos funcionários imperiais, os ricos libertos da administração central e a aristocracia senatorial. Roma esvaziava-se literalmente a partir do início do Verão. A canícula asfixiava a cidade de tal forma que até os mais pobres procuravam refúgio nos campos, nas zonas rurais onde possuíam familiares e perto do mar, sobretudo para Sul.
Augusto embarcou com a corte no mês de Julho em Astura, no Latium, onde se aparelhara o navio imperial para iniciar o último Verão da sua vida. Com quase setenta e seis anos, alquebrado, gasto, continuava a manter aquela fria dignidade que ele associava com o sacrifício de tudo, até da própria saúde e da família, à exemplar e sacralizada majestade do cargo. Achava-se no fim da vida, minado pela doença. Aliás, a sua saúde fora sempre frágil desde criança. Louro, pálido, de pequena estatura, mas de formas harmoniosas, belos olhos azuis que reflectiam uma luz intensa, era um belo rapaz, pois apesar da fragilidade física aparente, o seu espírito forte e determinado, a sua persistência, a sua personalidade vincadamente agressiva e cruel, quando as exigências de momento o requeriam, faziam dele um homem obrigatoriamente respeitado e temido. A fragilidade física preocupou-o sempre. Era friorento, sofria do estômago e dos intestinos, suportava ataques biliares e cãibras frequentes e por diversas vezes esteve à morte. No entanto, ela só se aproximou para levá-lo para o reino das sombras nesse Verão asfixiante de 767. Ninguém poderia ter adivinhado, ou talvez de momento só a sua mulher, a sua fiel e implacável mulher Lívia, minha bisavó, que o Verão de Nola seria o princípio do fim do sonho dos Cláudios e dos Júlios..., mas tudo então estava calmo: nas fronteiras, na Germânia e na Panónia, tanto meu pai como Junius Blaesius mantinham a paz. Duas regiões que tinham levantado grandes problemas, alguns anos atrás. Dez anos antes meu tio Tibério fora obrigado a uma intensa campanha de pacificação na Germânia. Quatro anos depois, em 761, as legiões romanas revoltaram-se por sua vez nas mesmas províncias em sinal de protesto contra as condições de vida que levavam nessas inóspitas paragens. Entretanto, de 759 a762, na Dalmácia e na Panónia, já houvera problemas graves e finalmente o grande desastre da floresta de Teutoburgo, na Germânia, fora das horas mais trágicas do Principado de Augusto, até porque Roma, a cidade centro do mundo, teve consciência de que um simples desastre militar como o de Varus, onde as sagradas águias romanas foram apreendidas pelos bárbaros e as legiões exterminadas quase até ao derradeiro homem, podia ficar também à mercê das hordas dos Queruscos como já acontecera nos tempos da República com os Gauleses». In Seomara Veiga Ferreira, Memórias de Agripina, 1993, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-231-664-4.


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