jdact
«(…)
Habituei-me há muito às mortes, às violências, às injustiças do mundo. Maior
que todos os vícios existe um: o da abstenção. O da abstenção sem grandeza de
ânimo. Não é esse o meu intuito. Neste preciso instante eu recuo na sombra da
minha morte porque, tal como os estóicos, eu decidi abandonar o mundo porque
ele já está morto para mim. Não vale a pena lutar por isto. Seria um acto de
cobardia. Esta foi a escolha que fiz. Sim, de livre vontade. Nem sequer é
necessário experimentar o gume afiado da adaga ou a rapidez misericordiosa do
veneno letal. Deixo o último acto do meu destino a Lúcio, a Nero, a meu filho,
ao Imperador. Esta forma de abstenção é justa. Tenho direito a ela, a abandonar
o palco agora que o grande teatro está vazio e eu completamente só. Em certa
medida consegui cumprir o plano do meu destino, pelo menos parte dele. Hoje
abandono o mundo e apetece-me dizer como meu bisavô no derradeiro instante: aplaudi,
senhores. Não representei bem, até ao fim, a farsa da vida? Se a peça vos
divertiu, aplaudi, senhores, aplaudi! Apesar de lhes ter exilado a mãe, Augusto
foi sempre extremamente zeloso e meigo para os netos que representavam os seus
mais caros ideais. Orgulhava-se de minha mãe, da sua castidade, da sua
fidelidade, da sua fertilidade. Querida Agripina, desejo que estejas bem e que chegues
de saúde e feliz junto de teu Germânico. Esta carta, por exemplo, foi escrita
na véspera dos Idos de Maio de 767, pouco tempo antes da morte do Imperador.
Nela,
meu bisavô avisava que enviava meu pequeno irmão Caio para a companhia dos pais
e juntamente um bom médico da sua casa, um liberto grego, para o caso de uma
emergência. Meu pai achava-se, portanto longe de Roma quando morreu o velho
Imperador. De certo modo com ele morria uma época, um século. O novo século
iniciava-se nas mãos de meu tio e avô por adopção Tibério e com a segunda
grande revolta das legiões na Panónia e na Germânia e foi nesse vasto, bárbaro
e gelado espaço da Germânia, durante o seu duro Inverno, que eu entrei na
história, num dos recantos desta imensa cena onde se joga o destino do mundo e
que é o Império.
Em
memória
O
mês de Agosto desse longínquo ano de 761 foi um dos mais quentes que a memória
dos velhos registou. A corte, como era tradição desde que Augusto foi o senhor
dos nossos destinos, achava-se perto de Nápoles. A baía de cor azul profundo, a
costa recortada de casario branco, os jardins tratados das villas acolhedoras e a majestosa imagem do Vesúvio sobrepondo-se a
toda a paisagem, constituíam um dos grandes prazeres do velho Imperador. Adorava,
rodeado pela família e amigos, gastar os dias calmosos do Verão ora em Baies,
ou em Bauli, ora em Herculanum, ora em Puteoli e em Capri, que ele comprara à
cidade de Nápoles, em qualquer das suas belas propriedades da Campânia, como a
grande maioria dos altos funcionários imperiais, os ricos libertos da
administração central e a aristocracia senatorial. Roma esvaziava-se
literalmente a partir do início do Verão. A canícula asfixiava a cidade de tal
forma que até os mais pobres procuravam refúgio nos campos, nas zonas rurais
onde possuíam familiares e perto do mar, sobretudo para Sul.
Augusto
embarcou com a corte no mês de Julho em Astura, no Latium, onde se aparelhara o
navio imperial para iniciar o último Verão da sua vida. Com quase setenta e
seis anos, alquebrado, gasto, continuava a manter aquela fria dignidade que ele
associava com o sacrifício de tudo, até da própria saúde e da família, à
exemplar e sacralizada majestade do cargo. Achava-se no fim da vida, minado
pela doença. Aliás, a sua saúde fora sempre frágil desde criança. Louro,
pálido, de pequena estatura, mas de formas harmoniosas, belos olhos azuis que
reflectiam uma luz intensa, era um belo rapaz, pois apesar da fragilidade
física aparente, o seu espírito forte e determinado, a sua persistência, a sua
personalidade vincadamente agressiva e cruel, quando as exigências de momento o
requeriam, faziam dele um homem obrigatoriamente respeitado e temido. A
fragilidade física preocupou-o sempre. Era friorento, sofria do estômago e dos
intestinos, suportava ataques biliares e cãibras frequentes e por diversas
vezes esteve à morte. No entanto, ela só se aproximou para levá-lo para o reino
das sombras nesse Verão asfixiante de 767. Ninguém poderia ter adivinhado, ou
talvez de momento só a sua mulher, a sua fiel e implacável mulher Lívia, minha
bisavó, que o Verão de Nola seria o princípio do fim do sonho dos Cláudios e
dos Júlios..., mas tudo então estava calmo: nas fronteiras, na Germânia e na
Panónia, tanto meu pai como Junius Blaesius mantinham a paz. Duas regiões que
tinham levantado grandes problemas, alguns anos atrás. Dez anos antes meu tio
Tibério fora obrigado a uma intensa campanha de pacificação na Germânia. Quatro
anos depois, em 761, as legiões romanas revoltaram-se por sua vez nas mesmas
províncias em sinal de protesto contra as condições de vida que levavam nessas inóspitas
paragens. Entretanto, de 759 a762, na Dalmácia e na Panónia, já houvera
problemas graves e finalmente o grande desastre da floresta de Teutoburgo, na
Germânia, fora das horas mais trágicas do Principado de Augusto, até porque
Roma, a cidade centro do mundo, teve consciência de que um simples desastre
militar como o de Varus, onde as sagradas águias romanas foram apreendidas
pelos bárbaros e as legiões exterminadas quase até ao derradeiro homem, podia
ficar também à mercê das hordas dos Queruscos como já acontecera nos tempos da
República com os Gauleses». In Seomara Veiga Ferreira, Memórias de
Agripina, 1993, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-231-664-4.
Cortesia
de EPresença/JDACT