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Os subalternos silenciosos, da ordem dos oitenta por cento, continuam em desvantagem,
porque eles próprios convencem o superior da ideia extravagante de que o seu poder
é realmente ilimitado e indiscutível. A selecção, a promoção e a despromoção são
a seu bel-prazer, mesmo que tenha de cair no pecado social da injustiça
arbitral. E necessário saber interpretar o sofrido silêncio de quem não sabe gritar
os inalienáveis direitos da pessoa humana, dado que o ambiente cria a virtude da
cumplicidade de estar calado e de suportar. Os súbditos amarrados à estaca, os despromovidos,
os excluídos da protecção das estrelas do clã encovilam-se no silêncio da glaciação
curial. Está escrito: Zelus domus tuae
comedit me. Quando a casa de Deus, a Igreja, está a arder, cada fiel tem a obrigação
de saber utilizar os extintores para dominar o incêndio: se nela há o fumo do demónio,
é necessário ter em atenção os focos que o alimentam. Quem se põe a olhar o incêndio
de Roma do cimo da colina, como Nero, torna-se conivente com a destruição. Quo vadis Domine? Neste aniversário bimilenar?
Vou expulsar satanás que está a incendiar a minha Igreja!
Enquanto
os mal-intencionados contrariam o bem com a maior naturalidade, também os indulgentes
o afastam com fanático desinteresse pensando, desse modo, prestar a Deus culto de
abulia. E, assim, todos julgam estar de bem com as suas consciências. Deus, que
tem o poder de justificar o pecador, torna-se impotente diante de quem se justifica
à sua maneira, passando sem ele. Certos prelados da curia, tal como os
meteorologistas, regulam os tempos da Igreja segundo os humores, as conveniências
e as mutabilidades das aspirações próprias e alheias, semeando discórdias e perturbações.
Os carrascos, cada um do seu próprio ponto de vista, presumem interpretar o pensamento
do outro, contradizendo-se uns aos outros como nas previsões do horóscopo. A história
da cúria oferece abundante material ilustrativo de eclesiásticos que procuraram
fazer aplicações do Evangelho de forma a garantir-lhes a perpetuidade dos privilégios
adquiridos. Isto chama-se desvirtuar a vontade divina para a fazer equivaler aos
pontos de vista individuais. Estes homens da Igreja que distribuem ordens, recorrem
gostosamente ao tema da vontade de Deus, identificando-a sempre e de qualquer forma
com o próprio interesse ao qual todos os subalternos devem submeter-se, sem limites
e sem discussões. Deste modo as coisas se baralham, depois, quando hierarquia, autoridades,
amigos, juristas, psicólogos, ascetas e tantos outros se intrometem a complicar
a meada dos acontecimentos vistos de perspectivas diferentes. Chega-se a um ponto
em que não se sabe a quem obedecer sem desobedecer a um outro.
A Igreja
não é o Vaticanismo
O
pensamento dos padres orientais sobre o conceito teológico da Igreja fundada
por Cristo não resulta tão totalizante como nos padres do Ocidente. A teologia
ocidental ressentiu-se, de forma determinante, da conceptualização genial de
Santo Agostinho, que foi capaz de exprimir a sua opinião sobre as grandes
verdades do saber humano de então, orientando, assim, a vida social e
individual das gerações futuras. Mas essas verdades, magistralmente expostas
pela Águia de Hipona, necessitavam de se adequar e readaptar à vastidão intelectiva
do saber humano das épocas seguintes, evitando condicionar-se reciprocamente. A
Igreja existe para os homens e não os homens para a Igreja. Todos os estudiosos
sérios, de qualquer quadrante, estão conscientes disso. Os padres orientais
comparam a Igreja a um grande navio invencível, diríamos, hoje, um Titanic. Quem quer que nele embarque,
neste mar tumultuoso, fará uma travessia tranquila e serena, diferente da
travessia noutras embarcações. No pensamento oriental todos os que não se
encontram dentro desse barco valem-se de outros meios providenciais para a travessia
em ordem ao fim último de todo o homem, com jangadas, chalupas, barcas, bóias
de salvação, isto é, através de outras crenças religiosas que, com dificuldade
e menos rapidez, orientam os homens para a salvação. É importante esta
esperança». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O
Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras,
2005, ISBN 972-46-1170-1.
Cortesia
Casa das Letras/JDACT