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«(…) Finalmente, uma reflexão sobre
Roma não pode excluir a questão das suas relações com a Grécia em matéria de
sexualidade. Como escreveu Paul Veyne na introdução à sua Histoire de la vie
privée (História da Vida Privada), os gregos estão em Roma, são o essencial de
Roma; o Império Romano e a civilização helenística, uma civilização universal
que se estende das Colunas de Hércules (Gibraltar) ao rio Indo. Os romanos, ao
conquistar esta área cultural, helenizam-se e integram sem grandes dificuldades
a cultura grega, que eles não sentem como estrangeira mas como sendo a cultura
por excelência. Porém, nesse compromisso, os romanos conseguem a proeza de criar
uma identidade genérica própria. Uma tendência da crítica actual vai no sentido
de querer demonstrar que a grecicidade está no coração de todas as coisas
romanas e que a cultura romana, a romanicidade, arriscava-se sempre a ser
confundida com o Outro. Contudo, esta questão das relações entre Grécia e Roma
não nos parece ser assim tão simples de resolver quando se trata dos papéis
sexuais. Contrariamente a outros domínios onde pudemos constatar a ausência de resguardos
contra a mistura entre nós e eles, a moral sexual tradicional erige-se de
maneira diferente relativamente à que estava em vigor em Atenas. Ao mesmo
tempo, os sonhos eróticos gregos povoam o imaginário de certas obras, como se a
identidade sexual do cidadão romano se constituísse em torno de duas
componentes: uma, latina; a outra, grega.
A nossa leitura será uma viagem até
outro mundo para nos lembrar a relatividade dos nossos valores actuais, porque
encontraremos mais diferenças com as normas da nossa sociedade do que
continuidades. Na sociedade ocidental actual, com efeito, baseamos as nossas
categorias sexuais na oposição dos sexos biológicos e nas categorias de um e do
outro. E dividimos os indivíduos em três categorias: os heterossexuais, que têm
relações com um parceiro do sexo oposto, os homossexuais, cujo parceiro sexual
é do mesmo sexo, e os bissexuais, que têm parceiros de ambos os sexos. Estas categorias
sexuais não são utilizadas em Roma e não formam uma grelha de análise
pertinente. Em Roma, a diferença baseia-se não no sexo biológico, mas sim nos
estatutos sociais e nas classes etárias, que implicam um papel sexual a
adoptar, activo ou passivo. Desse modo, as nossas categorias modernas de
análise não são adequadas para descrever o comportamento sexual dos romanos:
portanto, evitá-las-emos tanto quanto possível. Os romanos recorrem a termos
que dificilmente são traduzíveis por meio de uma única palavra equivalente. As
noções de stuprum, pudor, pudicitia, impudicitia, cinaedus, irrumator ou fellator não
têm equivalentes no nosso sistema axiológico. Ser-nos-á necessário descrever
uma cultura e a sua ideologia numa outra linguagem, testemunho de outro sistema
de pensamento. É certo que as fontes antigas mostram uma consciência das
diferenças sexuais e comparam por vezes as práticas sexuais entre pessoas do
mesmo sexo e entre pessoas de sexo oposto, mas não as considerando como
essencialmente diferentes. Não atribuem aos indivíduos uma identidade baseada
na sua orientação sexual, como o desenvolvimento da psicologia, no final do
século XIX, incitará a que se faça. o que prevalece é o respeito ou não pelo
papel social a desempenhar na vida sexual do indivíduo.
A
história da sexualidade varia de acordo com as diferentes camadas da sociedade.
A moral sexual é relativizada ao extremo em função da pertença social de cada
indivíduo. Na corte imperial e nas famílias mais abastadas, os costumes sexuais
parecem ser mais livres do que os dos notáveis de Roma ou dos habitantes das
províncias. A acreditar em certos autores, os habitantes das cidades de
província e das municipalidades italianas preservavam uma probidade ancestral,
perdida na capital corrompida. Plínio, o
Jovem, afirma que a Itália mantém e conserva ainda muita da moderação, da
frugalidade e da rusticidade antigas. Tácito, de forma semelhante, assinala que
a Itália permaneceu austera e ligada até hoje aos costumes antigos e que
aqueles que vivem nas províncias longínquas não conhecem a devassidão; os homens
novos, chamados dos municípios, das colónias e das províncias para entrar no
Senado, trouxeram para Roma a sua parcimónia doméstica. Porém, não saberemos
mais do que isso. Os documentos que temos dizem respeito essencialmente à
classe abastada e cultivada dos romanos e à corte imperial, ou seja, uma ínfima
parte da população, e não se interessam por todos aqueles que se encontram
excluídos do poder». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual
na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago Marques, 2010,
Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.
Cortesia
de TGrafia/JDACT