quarta-feira, 20 de julho de 2016

Roma Antiga. A vida sexual. Géraldine Puccini-Delbey. «Em Roma, a diferença baseia-se não no sexo biológico, mas sim nos estatutos sociais e nas classes etárias…»

jdact

«(…) Finalmente, uma reflexão sobre Roma não pode excluir a questão das suas relações com a Grécia em matéria de sexualidade. Como escreveu Paul Veyne na introdução à sua Histoire de la vie privée (História da Vida Privada), os gregos estão em Roma, são o essencial de Roma; o Império Romano e a civilização helenística, uma civilização universal que se estende das Colunas de Hércules (Gibraltar) ao rio Indo. Os romanos, ao conquistar esta área cultural, helenizam-se e integram sem grandes dificuldades a cultura grega, que eles não sentem como estrangeira mas como sendo a cultura por excelência. Porém, nesse compromisso, os romanos conseguem a proeza de criar uma identidade genérica própria. Uma tendência da crítica actual vai no sentido de querer demonstrar que a grecicidade está no coração de todas as coisas romanas e que a cultura romana, a romanicidade, arriscava-se sempre a ser confundida com o Outro. Contudo, esta questão das relações entre Grécia e Roma não nos parece ser assim tão simples de resolver quando se trata dos papéis sexuais. Contrariamente a outros domínios onde pudemos constatar a ausência de resguardos contra a mistura entre nós e eles, a moral sexual tradicional erige-se de maneira diferente relativamente à que estava em vigor em Atenas. Ao mesmo tempo, os sonhos eróticos gregos povoam o imaginário de certas obras, como se a identidade sexual do cidadão romano se constituísse em torno de duas componentes: uma, latina; a outra, grega.
A nossa leitura será uma viagem até outro mundo para nos lembrar a relatividade dos nossos valores actuais, porque encontraremos mais diferenças com as normas da nossa sociedade do que continuidades. Na sociedade ocidental actual, com efeito, baseamos as nossas categorias sexuais na oposição dos sexos biológicos e nas categorias de um e do outro. E dividimos os indivíduos em três categorias: os heterossexuais, que têm relações com um parceiro do sexo oposto, os homossexuais, cujo parceiro sexual é do mesmo sexo, e os bissexuais, que têm parceiros de ambos os sexos. Estas categorias sexuais não são utilizadas em Roma e não formam uma grelha de análise pertinente. Em Roma, a diferença baseia-se não no sexo biológico, mas sim nos estatutos sociais e nas classes etárias, que implicam um papel sexual a adoptar, activo ou passivo. Desse modo, as nossas categorias modernas de análise não são adequadas para descrever o comportamento sexual dos romanos: portanto, evitá-las-emos tanto quanto possível. Os romanos recorrem a termos que dificilmente são traduzíveis por meio de uma única palavra equivalente. As noções de stuprum, pudor, pudicitia, impudicitia, cinaedus, irrumator ou fellator não têm equivalentes no nosso sistema axiológico. Ser-nos-á necessário descrever uma cultura e a sua ideologia numa outra linguagem, testemunho de outro sistema de pensamento. É certo que as fontes antigas mostram uma consciência das diferenças sexuais e comparam por vezes as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo e entre pessoas de sexo oposto, mas não as considerando como essencialmente diferentes. Não atribuem aos indivíduos uma identidade baseada na sua orientação sexual, como o desenvolvimento da psicologia, no final do século XIX, incitará a que se faça. o que prevalece é o respeito ou não pelo papel social a desempenhar na vida sexual do indivíduo.
A história da sexualidade varia de acordo com as diferentes camadas da sociedade. A moral sexual é relativizada ao extremo em função da pertença social de cada indivíduo. Na corte imperial e nas famílias mais abastadas, os costumes sexuais parecem ser mais livres do que os dos notáveis de Roma ou dos habitantes das províncias. A acreditar em certos autores, os habitantes das cidades de província e das municipalidades italianas preservavam uma probidade ancestral, perdida na capital corrompida. Plínio, o Jovem, afirma que a Itália mantém e conserva ainda muita da moderação, da frugalidade e da rusticidade antigas. Tácito, de forma semelhante, assinala que a Itália permaneceu austera e ligada até hoje aos costumes antigos e que aqueles que vivem nas províncias longínquas não conhecem a devassidão; os homens novos, chamados dos municípios, das colónias e das províncias para entrar no Senado, trouxeram para Roma a sua parcimónia doméstica. Porém, não saberemos mais do que isso. Os documentos que temos dizem respeito essencialmente à classe abastada e cultivada dos romanos e à corte imperial, ou seja, uma ínfima parte da população, e não se interessam por todos aqueles que se encontram excluídos do poder». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago Marques, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.

Cortesia de TGrafia/JDACT