quarta-feira, 20 de julho de 2016

Os lindos braços da Júlia da farmácia. Rentes Carvalho. «Ele continuava no hotel, porque as casas que tinham visitado eram grandes demais e caras, ou então pardieiros, mas ela garantia que haviam de achar. É por causa da guerra»

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Um amor em Sevilha
«(…) Escreveu o endereço, humedeceu a goma, fechou o sobrescrito vagarosamente, como se assim emprestasse solenidade ao acto, e ela guardou-o na bolsa, dizendo que à noite o entregaria ao cunhado. Ele é de confiança? Manolo? Claro que é de confiança! Ela ia abespinhar-se, mas nesse momento apareceu uma multidão a correr, alguns com armas, mal tiveram tempo de se abrigar no interior do café quando começou o tiroteio. São os vermelhos, explicou um cliente, e a Guardia Civil atrás deles. Quê?, perguntou o empregado de má cara. O homem fez um gesto de apaziguamento e, meio de lado, encaminhou-se para o fundo da sala. Já fazia escuro quando se arriscaram a sair para a rua, o céu avermelhado com o clarão dos incêndios das igrejas e da fábrica do marquês de Tena. De longe a longe ouviam-se tiros. Passava gente alvoroçada a gritar que Queipo de Llano tinha mandado metralhar o Governo Civil. Separaram-se de madrugada, combinando que no dia seguinte se encontrariam às três. Não iriam procurar casa como tinham pensado, era melhor esperar que as coisas acalmassem. Se houvesse cinema iriam ver Scarface.
Um mês depois, ele preocupado com a possibilidade de ser traído e preso, ela arrebatada de entusiasmo pela vitória do que achava a causa mais justa, assistiram à entrada triunfal do Caudillo à frente dos mouros do Ejército de África. Na sua paixão pouco ou nada tinha mudado. O arrebatamento era o do início, não lhes acontecera uma zanga, nem sequer a troca de palavras menos amigas que às vezes nasce da impaciência ou de um desacordo fútil. Ele continuava no hotel, porque as casas que tinham visitado eram grandes demais e caras, ou então pardieiros, mas ela garantia que haviam de achar. É por causa da guerra. Mas o fim não tarda, vais ver. Depois há aí casas à farta. Contactos com os camaradas não voltara a procurar, resposta da mulher também não tinha vindo, a estada em Sevilha parecia ter recebido um toque mágico, pois, ao contrário do seu carácter, sentia-se tomado de uma extrema lassitude. As tropas nacionalistas estavam às portas de Madrid, mas nem por um instante lhe pareceu que isso pudesse ter qualquer consequência para a mulher e o filho. Não lhes acontece nada, não achas? A amiga concordou. Com certeza ia haver luta, mas os vermelhos não estavam em condições de aguentar. Além disso, às mulheres e às crianças ninguém faria mal. Comiam, passeavam, amavam-se, o sol do Verão alongava as sestas, o calor da noite obrigava-os a ficar na rua até desoras. Tinham visto Scarface três vezes e no hotel já os consideravam um casal.
Até que uma manhã, acordando sozinho, teve a impressão de que saía de uma embriaguez e, sobressaltado, acabou por se sentar na cama, abanando desesperadamente a cabeça. Em que se tinha metido? Que feitiçaria o levara a passar quase dois meses no deboche, sem uma vez sequer se dar conta do que lhe acontecia? Era de garoto ingénuo. não era de homem! A história requentada e banal da paixão romântica pela prostituta! Sim, evidentemente, tinham sido meses intensos, um fogo, mas não era para continuar menos ainda para acabar ali a vida! Sorriu à ideia de que ela lhe propusesse vir a ser o seu chulo. E arrepelava-se por não poder reparar a asneira da carta que tinha escrito à mulher. Divorciar-se! Acabar os seus dias em Sevilha, tomando café, passeando no Alcázar, talvez a ter de esperar, resignado, que ela voltasse dos clientes!» In José Rente de Carvalho, Os lindos braços da Júlia da farmácia, 2011, Quetzal Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-564-967-1.

Cortesia de QuetzalE/JDACT