jdact
Um
amor em Sevilha
«(…)
Escreveu o endereço, humedeceu a goma, fechou o sobrescrito vagarosamente, como
se assim emprestasse solenidade ao acto, e ela guardou-o na bolsa, dizendo que
à noite o entregaria ao cunhado. Ele é de confiança? Manolo? Claro que é de
confiança! Ela ia abespinhar-se, mas nesse momento apareceu uma multidão a
correr, alguns com armas, mal tiveram tempo de se abrigar no interior do café
quando começou o tiroteio. São os vermelhos, explicou um cliente, e a Guardia Civil
atrás deles. Quê?, perguntou o empregado de má cara. O homem fez um gesto de
apaziguamento e, meio de lado, encaminhou-se para o fundo da sala. Já fazia
escuro quando se arriscaram a sair para a rua, o céu avermelhado com o clarão
dos incêndios das igrejas e da fábrica do marquês de Tena. De longe a longe
ouviam-se tiros. Passava gente alvoroçada a gritar que Queipo de Llano tinha mandado
metralhar o Governo Civil. Separaram-se de madrugada, combinando que no dia
seguinte se encontrariam às três. Não iriam procurar casa como tinham pensado,
era melhor esperar que as coisas acalmassem. Se houvesse cinema iriam ver Scarface.
Um
mês depois, ele preocupado com a possibilidade de ser traído e preso, ela
arrebatada de entusiasmo pela vitória do que achava a causa mais justa,
assistiram à entrada triunfal do Caudillo
à frente dos mouros do Ejército de África.
Na sua paixão pouco ou nada tinha mudado. O arrebatamento era o do início, não lhes
acontecera uma zanga, nem sequer a troca de palavras menos amigas que às vezes
nasce da impaciência ou de um desacordo fútil. Ele continuava no hotel, porque
as casas que tinham visitado eram grandes demais e caras, ou então pardieiros,
mas ela garantia que haviam de achar. É por causa da guerra. Mas o fim não
tarda, vais ver. Depois há aí casas à farta. Contactos com os camaradas não
voltara a procurar, resposta da mulher também não tinha vindo, a estada em
Sevilha parecia ter recebido um toque mágico, pois, ao contrário do seu
carácter, sentia-se tomado de uma extrema lassitude. As tropas nacionalistas
estavam às portas de Madrid, mas nem por um instante lhe pareceu que isso
pudesse ter qualquer consequência para a mulher e o filho. Não lhes acontece
nada, não achas? A amiga concordou. Com certeza ia haver luta, mas os vermelhos
não estavam em condições de aguentar. Além disso, às mulheres e às crianças
ninguém faria mal. Comiam, passeavam, amavam-se, o sol do Verão alongava as
sestas, o calor da noite obrigava-os a ficar na rua até desoras. Tinham visto Scarface três vezes e no hotel já os
consideravam um casal.
Até
que uma manhã, acordando sozinho, teve a impressão de que saía de uma
embriaguez e, sobressaltado, acabou por se sentar na cama, abanando
desesperadamente a cabeça. Em que se tinha metido? Que feitiçaria o levara a
passar quase dois meses no deboche, sem uma vez sequer se dar conta do que lhe
acontecia? Era de garoto ingénuo. não era de homem! A história requentada e banal
da paixão romântica pela prostituta! Sim, evidentemente, tinham sido meses
intensos, um fogo, mas não era para continuar menos ainda para acabar ali a
vida! Sorriu à ideia de que ela lhe propusesse vir a ser o seu chulo. E
arrepelava-se por não poder reparar a asneira da carta que tinha escrito à
mulher. Divorciar-se! Acabar os seus dias em Sevilha, tomando café, passeando
no Alcázar, talvez a ter de esperar, resignado, que ela voltasse dos clientes!»
In
José Rente de Carvalho, Os lindos braços da Júlia da farmácia, 2011, Quetzal
Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-564-967-1.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT