terça-feira, 19 de julho de 2016

A Filha do Conspirador. Philippa Gregory. «Somos as herdeiras mais ricas da Inglaterra, e meu pai domina os mares estreitos entre Calais e a costa inglesa. Somos da grande família Neville, guardiões do norte da Inglaterra»



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Torre de Londres. Maio de 1465
«(…) Essa deve ser a primeira vez que comparece a um banquete na Torre, Anne?, pergunta ele. Sinto-me muito animada e assustada por ele ter prestado atenção em mim, e meu rosto enrubesce, mas respondo, sim, de maneira clara o suficiente. Ricardo, na outra extremidade da mesa, é um ano mais novo que Isabel, e mais baixo que ela, mas agora que seu irmão é o rei da Inglaterra ele parece muito mais alto e muito mais bonito. Sempre teve o sorriso mais alegre e os olhos mais gentis, mas agora, ao assumir seu melhor comportamento no banquete de coroação de sua cunhada, está formal e calado. Isabel tenta entabular uma conversa com ele, muda o assunto para a equitação e pergunta se ele se lembra de nosso pequeno pónei no Castelo de Middleham. Ela sorri e pergunta: não foi engraçado quando Pepper empinou com ele e caiu? Ricardo, que sempre foi tão irritadiço em relação ao seu orgulho quanto um galo de briga, volta-se para Martha Woodville e diz que não se lembra. Isabel tenta mostrar que somos amigos, melhores amigos, mas na verdade ele é apenas um entre a meia dúzia de escudeiros do pai com quem caçávamos e jantávamos nos velhos tempos, quando vivíamos na Inglaterra e em paz. Isabel quer convencer as jovens Rivers de que somos uma família feliz e de que elas são intrusas indesejadas, mas, na verdade, somos apenas meninas da Casa de Warwick sob os cuidados de nossa mãe, e os meninos York andam a cavalo com nosso pai. Isabel pode fazer cara feia o quanto quiser, mas não deixarei que me façam sentir desconfortável. Nós temos mais direito de estar sentadas a esta mesa do que qualquer um, muito mais do que as belas meninas Rivers. Somos as herdeiras mais ricas da Inglaterra, e meu pai domina os mares estreitos entre Calais e a costa inglesa. Somos da grande família Neville, guardiões do norte da Inglaterra; temos sangue real em nossas veias. Meu pai tem sido o tutor de Ricardo, além de mentor e conselheiro do próprio rei, e somos tão bons quanto qualquer um no salão, mais ricos do que qualquer um no salão, mais ricos até mesmo que o rei e muito mais bem-nascidas do que a nova rainha. Posso falar de igual para igual com qualquer duque real da Casa de York, pois, sem meu pai, eles teriam perdido a guerra, os Lancaster ainda reinariam, e George, por mais bonito e principesco que seja, seria agora irmão de um ninguém e filho de um traidor. É um longo banquete, embora o de coroação da rainha vá ser ainda mais demorado. Esta noite eles servem 32 pratos, e a rainha envia algumas travessas especiais para a nossa mesa, para honrar-nos com sua atenção. George se levanta e faz uma reverência a ela em agradecimento, e então serve a todos nós da bandeja de prata. Ele percebe que eu o observo e me dá uma colherada extra de molho com uma piscadela. De vez em quando minha mãe olha de relance para mim, como a luz de um farol percorrendo o mar escuro. Cada vez que sinto seu olhar sobre mim, levanto a cabeça e sorrio para ela. Tenho certeza de que não pode me repreender. Tenho um dos novos garfos em minha mão e um guardanapo em minha manga, como se fosse uma dama francesa, familiarizada com esses novos modos. Diluo vinho no copo à minha direita e como da forma que me ensinam: delicadamente e sem pressa. Se George, um duque real, escolhe dedicar a mim sua atenção, então não vejo por que ele não deveria fazê-lo, nem por que alguém deveria ficar surpreso com isso. Certamente, não é surpreendente para mim.
Na noite anterior à coroação da rainha, compartilho uma cama com Isabel, como fazemos durante o período em que somos convidadas do rei na Torre, como faço em nossa casa em Calais, como fiz todas as noites de minha vida. Sou mandada para o quarto uma hora antes dela, apesar de estar muito agitada para dormir. Faço minhas preces e deito ouvindo a música que flutua vinda do salão lá em baixo. Eles ainda estão dançando; o rei e sua esposa adoram dançar. Quando Eduardo segura a mão dela, todos percebem que ele se contém para não trazê-la mais para perto de si. A rainha baixa o olhar por um instante, mas, quando volta-o novamente para o rei, ele ainda está contemplando-a com semblante apaixonado, e ela retribui com um sorriso cheio de promessas. Não posso deixar de imaginar se o velho rei, o rei adormecido, está acordado esta noite, em algum lugar nas terras selvagens do norte da Inglaterra. É horrível pensar que ele, mesmo dormindo profundamente, sabe, em seus sonhos, que o novo rei e a nova rainha estão dançando depois de se coroarem e se colocarem em seu lugar, que amanhã uma nova rainha usará a coroa de sua esposa. O pai diz que eu não tenho nada a temer, que a rainha má fugiu para a França e não conseguirá qualquer ajuda de seus amigos franceses. Ele está se reunindo com o rei da França em pessoa para se assegurar de que ele se tornará nosso aliado e de que a rainha má não vai conseguir nenhum apoio vindo dele. Ela é nossa inimiga, a inimiga da paz na Inglaterra. Papai se certificará de que não haverá lugar para ela na França, assim como não haverá um trono para ela na Inglaterra. Enquanto isso, o rei adormecido, sem sua esposa, sem seu filho, estará bem agasalhado em um pequeno castelo, em algum lugar perto da Escócia, dormindo pelo resto da vida como uma abelha durante todo o Inverno. Meu pai diz que ele continuará nesse estado e que ela continuará explodindo de raiva até ambos envelhecerem e morrerem, e que não há nenhuma razão para eu ter medo. Foi meu pai quem bravamente tirou o rei adormecido do trono e colocou a coroa sobre a cabeça do rei Eduardo, então ele deve estar certo. Foi ele quem enfrentou a terrível rainha má, uma loba pior do que os lobos na França, e a derrotou. Mas não gosto de pensar no velho rei Henrique, com o luar brilhando em suas pálpebras fechadas, enquanto os homens que o destituíram estão dançando no que antes era seu grande salão. Não gosto de pensar na rainha má, tão longe na França, jurando que se vingará de nós, amaldiçoando nossa felicidade e dizendo que voltará para este lugar que ela chama de seu lar». In Philippa Gregory, A Filha do Conspirador, 2012, A Guerra dos Primos, volume IV, Civilização Editora, 2013, ISBN: 978-972-263-519-6.

Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT