terça-feira, 26 de julho de 2016

A representação medieval dos tempos troianos na versão galega da Crónica Troiana de Afonso XI. Pedro Chambel. «Depois de ser narrada a destruição que provocou no campo dos gregos, o ser mitológico persegue Diomedes que, envergonhado da fuga empreendida perante o Sagitário»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Utilizando os relatos de Dares e Dictis, Benoit recriou a sua própria narrativa, ampliando episódios, introduzindo dados de outros autores ou da sua própria imaginação. Neste sentido, Ramón Lorenzo assinala como o autor medieval se detém nos amores de Jasão e Medeia, prolonga o relato do juízo de Páris, muda o texto de Dares na embaixada de Ulisses e Diomedes a Tróia, os bastardos ganham particular relevância na narrativa, enquanto introduz novos nomes, insere os episódios do Sagitário, o da prisão de Toas e o da posterior troca de prisioneiros com Antenor, a referência a Narciso e o amor de Troilo e Briseide. As aventuras finais de Ulisses encontram-se mais desenvolvidas do que na obra de Dictis, entre outras modificações e acrescentos, algumas por erro de interpretação das fontes. Por outro lado, é introduzida uma exposição geográfica do Oriente, a partir da Cosmographia de Aethicus, com que se inicia o episódio das amazonas, assim como o relato dos costumes destas. Por fim, dois aspectos ganham particular revelo na obra de Benoit. Neste sentido, regista-se as descrições das batalhas, que surgem ampliadas e descritas ao gosto medieval, com a introdução das justas entre os heróis gregos e troianos, detendo-se, o autor nos preparativos da guerra, nas descrições das armas, armaduras e cavalos, nos instrumentos sonoros utilizados antes e durante os combates e no número de guerreiros chefiados pelos líderes gregos e troianos, enquanto as donas e donzelas assistem, nos muros da cidade, às façanhas dos heróis. No entanto, é com a inclusão dos motivos do amor cortês que se destaca a originalidade da obra, introduzindo Benoit, episódios inéditos a Dares e Dictis, ou por estes apenas aludidos. Surgem assim, com particular realce as descrições dos amores de Jasão e Medeia, do desespero de Andrómaca por Heitor ignorar o sonho profético da esposa, o desenvolvimento da narrativa da paixão entre Páris e Helena, o amor de Pentesileia por Heitor e o de Aquiles por Políxena que se encontra na origem do destino trágico do herói. Por fim, um dos momentos culminantes da obra regista-se no relato das vicissitudes das paixões de Troilo e Diomedes por Briseide. Neste sentido, proponho-me analisar a evolução da narrativa do triângulo amoroso formado pelas três personagens como forma de abordar as temáticas da consciência histórica do passado dos autores medievais e a representação dos tempos troianos na Crónica, uma vez que, como veremos, nela se encontram presentes os elementos atrás assinalados da reconstrução medieval da Antiguidade.

A Narrativa de Troilo, Diomedes e Briseide. As Personagens
A primeira referência aos protagonistas na narrativa surge quando Troilo, durante o conselho promovido pelo pai, o rei Príamo, no qual se discute a vingança da primeira destruição de Tróia e do rapto da irmã do monarca, toma o partido pelo ataque punitivo aos gregos por uma hoste liderada por Páris. Quanto a Diomedes, ele surge na narrativa quando se mencionam os chefes gregos que se reuniram, a pedido de Agamémnon e Menelau, para preparar o ataque a Tróia, sendo caracterizado como o ardido. Seguidamente, de forma mais particularizada, ambos são novamente mencionados quando se descrevem as principais personagens gregas e troianas. Carlos Garcia Gual afirma que, neste relato, Benoit encontrou na obra de Dares um excelente campo para praticar a arte da descriptio e da amplificatio, em voga na retórica medieval. Assim, Diomedes é apresentado como valente, orgulhoso e ardido. Da descrição física, realça-se o rosto que, segundo o narrador, era bravo e felon, afirmando-se como era difícil a convivência com o herói grego, nomeadamente para os que o serviam. A Troilo, o narrador dedica-lhe maior atenção, descrevendo-o de forma pormenorizada. Neste sentido, acentua o seu aspecto alegre e gracioso, ao qual se acrescentam os modos corteses, como a particularidade de sempre se vestir bem, o corpo bem proporcionado, os olhos verdes caracterizados como irradiando amor e o seu gosto pela convivência com as damas. Realça, ainda, a sua capacidade guerreira, apenas superada pela do irmão Heitor, e caracterizada pela forma cortês com que realizava e procurava as proezas em combate, surgindo assinalado o contraste de comportamento entre os dois cavaleiros.
Assim, ao relato breve e conciso do carácter e físico de Diomedes, sobrepõe-se o detalhado de Troilo. Este surge segundo o modelo ideal de cavaleiro, acrescentando o narrador, à referência das suas capacidades guerreiras, os seus modos corteses, nomeadamente no que respeita ao cuidado posto no vestir e na preocupação de agradar e conviver com as damas. Ao contrário da descrição de Diomedes, a de Troilo afasta-se da que caracteriza os impetuosos heróis épicos, surgindo como uma antecipação dos cavaleiros corteses arturianos, adaptando-se, assim, a personagem ao público do romance. O carácter impulsivo e orgulhoso de Diomedes manifesta-se, inicialmente, quando é incumbido de acompanhar Ulisses, como embaixador dos gregos, para pedir a Príamo Helena. No episódio, Diomedes acaba por afrontar e desafiar os cavaleiros que acompanham o monarca troiano, contrastando a sua atitude com a que caracteriza a postura cautelosa do companheiro. Num segundo momento surge como o herói que consegue abater o Sagitário.
O narrador realça, então, a condição compósita, bestial e fabulosa do ser. Se as características físicas do Sagitário o remetem para um ser híbrido, também tal estatuto se aplica ao seu comportamento. Na verdade, a sua acção em combate, caracteriza-se, ora pela bestialidade da sua movimentação e pelos pavorosos gritos com que intimida as hostes gregas, aos quais se acrescentam a espuma semelhante a chamas que emana da boca, os ardentes e vermelhos cabelos e o bafo que parecia queimar o ar, como se mostra capaz de entender e seguir as instruções que lhe são dadas, utilizando habilmente o arco, cujas setas tinha previamente envenenado. São ainda referenciadas as aves fabulosas cujas penas utiliza nas setas. Depois de ser narrada a destruição que provocou no campo dos gregos, o ser mitológico persegue Diomedes que, envergonhado da fuga empreendida perante o Sagitário, que o direccionava para as hostes troianas, decide, já ferido, enfrentá-lo acabando por o abater, assinalando-se o carácter impetuoso e ardido do cavaleiro que lhe permitiu defrontar e vencer o fabuloso ser. Quanto a Briseide, ela é inicialmente mencionada quando se relata o pedido feito pelo pai, o adivinho Calcas, a Agamémnon para que Príamo permitisse que a filha se lhe juntasse. Este consente, e o autor fala do amor que une Briseide a Troilo, a que se segue o monólogo durante o qual a donzela, depois de manifestar o pesar e o sofrimento por abandonar Tróia, afirma que permanecerá fiel ao amigo. Por fim, os amantes, desesperados, juram manter o amor que os une e expressam o pesar pela saída forçada de Briseida da cidade». In Pedro Chambel, A representação medieval dos tempos troianos na versão galega da Crónica Troiana de Afonso XI, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.

Cortesia de IEM/JDACT