Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
E, ainda assim, a recriação se deu a partir de depoimentos de testemunhas. Antes
de entregar os originais à gráfica, submeti meu trabalho aos olhos de três dos
mais brilhantes e impiedosos jornalistas deste país, Luís Weis, Raimundo
Rodrigues Pereira e Ricardo Setti, e à mão vigilante de Vladimir Sacchetta, indiscutivelmente
uma das maiores autoridades no estudo da memória do movimento operário
brasileiro. E, por fim, recebi a ajuda do talentoso Claudio Marcondes, a quem a
Editora AlfaOmega atribuíra o trabalho de homogeneizar a grafia de palavras e
de fazer a preparação do texto que iria para a composição. Claudio acabou por
propor alterações essenciais para a clareza deste livro. Roubei deles preciosas
horas de trabalho e lazer, e não me arrependi: a partir de suas críticas,
observações e objecções, sentei de novo à máquina para corrigir os erros. Embora
a responsabilidade por tudo o que você vai ler agora seja exclusivamente minha,
eu devo este livro à colaboração generosa dos entrevistados (cujos nomes vão
relacionados ao final). In Fernando Morais, Agosto de 1985
Berlim.
Alemanha. Abril de 1928
Tudo
aconteceu em menos de um minuto. Pontualmente às nove horas da manhã de 11 de Abril
de 1928, o guarda Gunnar Blemke atravessou o salão de audiências revestido de
mogno da prisão de Moabit, no centro de Berlim, levando pelo braço, algemado, o
professor comunista Otto Braun, de 28 anos. Não que Otto fosse considerado um
preso perigoso; as algemas se justificavam por ser um acusado de alta traição à
pátria, encarcerado havia um ano e meio, aguardando julgamento. O guarda
caminhou com ele em direcção à mesa onde se encontrava o secretário superior de
Justiça, Ernst Schmidt, que deveria interrogar Otto Braun. A seu lado, o
escrivão Rudolph Nekien lutava para não cochilar sobre a máquina de escrever. Na
outra ponta do salão, bem em frente à mesa de Schmidt, um pequeno auditório
destinado ao público e aos advogados e isolado por um balaústre de madeira,
estava ocupado por meia dúzia de adolescentes, moças e rapazes. Pensei que
fossem estudantes de Direito, diria o guarda mais tarde. Blemke estufou o peito
diante da autoridade e anunciou: apresentando o preso Otto Braun. Nesse
instante ele sentiu algo duro encostado em sua nuca.
Virou
a cabeça e viu uma pistola negra apontada contra seu rosto por uma linda moça
de cabelos escuros e olhos azuis, que exigiu com voz firme: solte o preso! No
auditório, os jovens dividiram-se em dois grupos e se atiraram sobre o
secretário Schmidt e o escrivão Nekien, que foi derrubado com violência.
Schmidt deu um salto, conseguiu bater a ponta do sapato sobre o botão de alarme
instalado no chão, e recebeu uma coronhada no rosto, dada por um garoto enorme,
de barba ruiva e cabelo escorrido até quase os ombros. A jovem de olhos azuis
que comandava o grupo mantinha a pistola apontada para a cabeça do guarda.
Depois de desarmá-lo, caminhou de costas em direcção à porta, cobrindo o preso
com seu corpo e gritando para seus companheiros: para a rua! Para a rua! Quem
se mexer leva chumbo! O guarda e os dois funcionários foram colocados de cara
contra a parede. Com gestos rápidos, a moça mandou que o grupo saísse. O bando
já disparava rumo ao portão principal, levando o preso para a calçada, quando
seu último grito ecoou na sala: o primeiro a se mover leva chumbo! E sumiu pelo
corredor. Ao saltar os degraus da escada na porta da prisão, o grupo se
dispersou, cada um fugindo por uma rua diferente. A jovem guardou a pistola na
sacola de lã a tiracolo e atravessou correndo o parque Fritz-Schloss para, no
outro extremo ao lado de um ginásio de desporto, atirar-se num pequeno furgão
verde que a esperava de portas abertas. Ao volante estava um jovem narigudo e
atrás, sentado no fundo da carroceria e com as mãos ainda algemadas, estava
Otto Braun, encolhido e assustado.
O
calhambeque ameaçava desmontar pelas ruas de Berlim. Agora precisavam sair das
imediações da prisão, cujas sirenes de alarme podiam ser ouvidas a quarteirões.
O carro tomou o rumo sul da cidade. Evitando as ruas mais movimentadas, margeou
o pequeno cemitério Blucher e cruzou o canal Schiffarts. Quando entrou no
bairro de Neuktilln, a moça, Otto e o narigudo puderam afinal respirar
aliviados. Em Neuktilln estavam em casa. Na hora do almoço, uma edição extra do
diário Bertiner Zeitung am Mittag já dava detalhes, sob escandalosa manchete,
do que chamava de ousada cena de faroeste ocorrida de manhã em Moabit. O
jornal anunciava em primeira mão o nome da linda jovem que comandara o
assalto comunista : Olga Benario.
Ousada cena...
A
noite, no pequeno apartamento que a Juventude Comunista conseguira na rua
Zieten para escondê-los, ao lado de seu namorado Otto Braun, Olga lia e relia o
noticiário dos jornais e parava sempre na mesma expressão. De facto, ousadia
era o único substantivo capaz de traduzir não apenas o que havia feito naquela
manhã, mas o sentimento que movia a maioria dos adolescentes comunistas do
bairro operário de Neukulln. Olhando para a rua através das cortinas do quarto
à meia-luz, ela contemplava mais uma manifestação desse estado de espírito.
Meia hora antes as tropas da polícia haviam percorrido a região, colando nos
postes e muros o enorme cartaz que o promotor superior de Justiça da Alemanha
mandara imprimir às pressas, oferecendo a recompensa de 5 mil marcos a quem
desse informações sobre o paradeiro do escritor Otto Bran e da dactilógrafa Olga Benario. Agora ela podia ver lá em
baixo, na rua, o nanico Gabor Lewin e a agitada Emmy Handke, seus companheiros,
arrancando todos os cartazes.
Que
outro nome dar, senão ousadia, para o que acontecia a poucas quadras dali, no
salão dos fundos da cervejaria Muller? Indiferentes ao cerco que a polícia
montara em Neukólln para apanhar os dois, os militantes do Rot Front, a Frente
Vermelha da Juventude Comunista, decidiram fazer um acto político para
comemorar a libertação de Braun. A primeira a falar foi uma garota de
trancinhas. As centenas de pessoas que se aglomeravam no salão, moças, rapazes,
velhos operários com suas mulheres e crianças de colo, ela comunicou que todos
os envolvidos na libertação de Braun estavam em segurança, e arrancou aplausos
demorados quando revelou que a acção fora realizada com armas descarregadas». In
Fernando Morais, Olga, 1985, Editora Ómega, 1993/1994, Companhia das Letras,
1985/1999, epub, 2014, ISBN 978-857-164-250-8.
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