sábado, 2 de julho de 2016

As Flores do Mal. Charles Baudelaire. «… a religião de Baudelaire, esse catolicismo travestido que se insurge contra os instintos originais, seja uma consequência lógica e como que uma conclusão de seu dandismo»

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«O dandismo baudelairiano está não apenas na raiz de toda a fundamentação estética do que produziu o autor, mas até mesmo na origem e na justificação de sua conduta humana e social. Recorra-se ao próprio poeta para que se entenda melhor essa instigante e paradoxal postura diante da vida e da arte. O que seria exactamente esse dândi e qual sua mais funda significação? Para Baudelaire, como para Pascal, a natureza estaria corrompida pela própria natureza, o que se torna particularmente claro quando, no fragmento XXII de Fusées, nos diz ele: l’homme, c’est-à-dire chacun, est si naturellement dépravé qu’il souffre moins de l’abaissement universel que de l’établissement d’une hiérarchie raisonnable. Essa visão de uma natureza desde sempre e necessariamente corrupta faz-se ainda mais nítida numa passagem de Éloge du maquillage, em L’art romantique, na qual Baudelaire sustenta que la nature n’enseigne rien, ou presque rien. Pouco adiante diz ele que o crime, dont l’animal humain a puisé le goût dans le ventre de sa mère, est originalement naturel, concluindo afinal que a virtude, e que o mal se fait sans effort, naturellement, par fatalité, ao passo que o bem est toujours le produit d’un art. Ao reagir dessa forma à ênfase que puseram algumas correntes do século XVIII sobre o papel da natureza enquanto fonte de todo o bem e de todo o belo, Baudelaire deixa muito clara sua posição: tudo o que é natural é abominável, incluíndo-se aí a mulher, que, por ser natural, c’est-à-dire abominable, é também toujours vulgaire, c’est-à-dire le contraire du dandy. É esse dândi que lhe justifica, como se lê no fragmento XVII de Fusées.  Em suma, uma self-purification and anti-humanity, como ele próprio grafa e grifa em Fusées e que corresponde à fórmula graças à qual o poeta ou fugia da dor intolerável ou a assumia, mas apenas sob o disfarce estético da maquilhagem. Entenda-se, pois, que a máscara do dândi, se de um lado é artifício, de outro não deixa de ser algo que se lhe aderiu à pele para sempre e tão profundamente que não mais lhe foi possível arrancá-la.
Claro está que, visto desse ângulo, o dandismo baudelairiano nada mais é que uma manifestação do espírito, um processo da vida interior cujas raízes e implicações são bem mais fundas do que se possa imaginar. É possível até, como sugerem Ferran e Ernest Raynaud, que a religião de Baudelaire, esse catolicismo travestido que se insurge contra os instintos originais, seja uma consequência lógica e como que uma conclusão de seu dandismo. O artifício do dandismo corrigiria assim a imperfeição natural, e esse é o desiderato único de toda a civilização. Quando Baudelaire nos afirma que tudo o que é natural é abominável, nada existe aí de subversivo, pois tal concepção está contida na ideia do pecado original. É também a partir desse procedimento aristocrático que se entende mais claramente o Baudelaire esteta, o escritor artista, o criador sempre insatisfeito com o que escrevia. Esse dândi é o próprio artista superior, o lúcido e refinado demiurgo do caos vocabular, aquele que se consagra à elaboração artificial, ou seja, intelectual, de um processo criativo do qual a natureza não participa. Corrupta em si mesma, a natureza é amoral e monstruosa. Compreende-se assim que, ao abordar o problema do dândi em L’art romantique, Baudelaire sustente: le mot dandy implique une quintessence de caractère et une intelligence subtile de tout le mecanisme moral dumonde. Esse dândi é, em suma, o próprio princípio da criação, centrado em si mesmo e produto de l’inébranlable résolution de ne pas être ému, assim como un feu latent qui se fait deviner, qui pourrait mais qui ne veut pas rayonner». In Charles Baudelaire, As Flores do Mal, 1857, Relógio d’Água, 2003, ISBN 978-972-708-762-4.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT