domingo, 10 de julho de 2016

Contos fantásticos do século XIX. Italo Calvino. «Depois de Hoffmann, Poe foi o autor que mais teve influência sobre o fantástico europeu, e a tradução de Baudelaire devia funcionar como o manifesto de uma nova atitude do gosto literário»

jdact e wikipedia



«(…) Toda antologia deve impôr-se limites e regras; a nossa se impôs a regra de apresentar um só texto de cada autor, regra particularmente cruel quando se trata de escolher uma única narrativa para representar todo o Hoffmann. Escolhi o mais típico e conhecido (porque é um texto que podemos chamar de obrigatório), O Homem de Areia, em que personagens e imagens da tranquila vida burguesa se transfiguram em aparições grotescas, diabólicas, assustadoras, como nos sonhos ruins. Mas eu também poderia ter me concentrado num Hoffmann em que o grotesco está quase ausente, como em As minas de Falun, no qual a poesia romântica da natureza toca o sublime com o fascínio do mundo mineral. As minas em que o jovem Ellis submerge a ponto de preferi-las à luz do sol e ao abraço da esposa são um dos grandes símbolos da interioridade ideal. E aqui está outro ponto essencial que toda análise sobre o fantástico tem de levar em conta: qualquer tentativa de definir o significado de um símbolo (a sombra perdida por Peter Schlemihl em Chamisso, as minas onde se perde o Ellis de Hoffmann, o caminho dos judeus em Die Majoratsherren, de Arnim) só faz empobrecer a sua riqueza de sugestões. A fora Hoffmann, as obras-primas do fantástico romântico alemão são muitolongas para entrar numa antologia que queira fornecer um panorama o mais extenso possível. A medida de até cinqenta páginas é outro limite que me impus, o que me forçou a renunciar a alguns dos meus textos prediletos, todos com adimensão do conto longo ou do romance breve: o Chamisso de que já falei, Isabela do Egipto e outras belas obras de Arnim, História de um vagabundo, de Eichendorff.
Na França, Hoffmann exerce forte influência sobre Charles Nodier, sobre Balzac (tanto o Balzac declaradamente fantástico quanto o Balzac realista, com suas sugestões grotescas e nocturnas) e sobre Théophile Gautier, de quem podemos puxar uma ramificação do tronco romântico que contará muito no desenvolvimento do conto fantástico: o esteticismo.
Depois de Hoffmann, Poe foi o autor que mais teve influência sobre o fantástico europeu, e a tradução de Baudelaire devia funcionar como o manifesto de uma nova atitude do gosto literário. Entretanto, os efeitos macabros e malditos de sua obra foram recebidos mais facilmente por seus descendentes do que sua lucidez racional, que é o traço distintivo mais importante desse autor. Falei antes de sua descendência europeia porque em seu país a figura de Poe não parecia tão emblemática a ponto de ele ser identificado com um género literário específico. Ao lado dele, aliás, um pouco antes dele, estava outro grande americano, que havia levado o conto fantástico a uma intensidade extraordinária: Nathaniel Hawthorne. Em suma, a tradição do fantástico herdada por Poe e transmitida a seus descendentes, que são na maioria epígonos e maneiristas (ainda que exuberantes nas cores da época, como Ambrose Bierce), já estava madura. Até que, com Henry James, nos encontraremos diante de uma nova virada. Na França, o Poe tornado francês por intermédio de Baudelaire não tarda a fazer escola. O mais interessante desses seus continuadores no âmbito específico do conto é Villiers de l'I sle Adam, que em Vera nos dá uma eficaz mise-en-scène do tema do amor que continua para além da morte; além disso, A tortura com a esperança é um dos exemplos mais perfeitos de fantástico puramente mental». Organização de Italo Calvino, Contos fantásticos do século XIX, O fantástico visionário e o fantástico quotidiano, 1983, vários tradutores, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, ISBN 978-853-590-502-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT