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Iriam demorar meia hora a chegar ao hotel, segundo avisara o motorista do autocarro
quando as portas do veículo se fecharam. Para acrescentar, na brincadeira, que
isso seria possível se ele conseguisse tirar os olhos do espelho retrovisor e
da bonita carga que transportava e não fossem todos parar ao fundo de um
qualquer buraco. Do telemóvel de Miss Nova Iorque começou a sair música rap. Já se percorrera metade da viagem quando
a embriagada Miss Florida, que era uma das rainhas de beleza mais jovens à
escala nacional, tirou os sapatos e, pondo-se descalça em cima do banco,
começou a girar as ancas ao som dos gritos de entusiasmo das restantes. A cada
solavanco das estradas mexicanas, a representante do Estado do Sol era
catapultada do banco impiedosamente macio e almofado contra o tecto do velho
autocarro. Aos gritos de incitamento das suas rivais, Miss Florida abriu,
exultante, o botão de cima do seu polo branco como a neve e posou de braços
abertos ao céu para os flashes dos
seus smartphones sem suspeitar de que
as perspectivas de ganhar o título se dissolviam na atmosfera cheia de álcool.
Não
teve qualquer hipótese quando o autocarro travou de emergência. Foi, de
imediato, catapultada para a frente, por entre as cabeças das suas colegas, que
gritavam, indo parar três filas mais à frente e batendo com o rosto nos
encostos de cabeça, com a nuca no tecto, com o braço no vidro da janela e com
os joelhos noutros corpos. Enquanto o autocarro rodava sobre si mesmo, a força
centrífuga arremessou-a na direcção oposta juntamente com a bagagem, as malas
de mão e as garrafas de bebidas. Já inconsciente, Miss Florida embateu numa das
janelas e foi atirada para trás, deixando uma racha comprida no vidro e
acabando por deslizar para debaixo de um dos bancos, como se fosse uma boneca
de trapos, de pernas e braços estranhamente retorcidos. Não percebeu, por isso,
o que depois aconteceu no autocarro, onde reinou um silêncio apenas interrompido
por gemidos que mal se ouviam. Também não ouviu o tiro que atravessou o
para-brisas, perigosamente perto da cabeça do motorista, nem reparou como ele
abria a porta do autocarro a um comando hispânico. Não viu as pesadas botas de
combate muito próximas da sua cabeça, que sangrava, nem ouviu as súplicas
assustadas do motorista, que foi arrancado do seu lugar e atirado porta fora,
indo parar à poeira da estrada. Miss Florida nem sentiu a dor penetrante que lhe
teria causado o embate da cana do nariz na borda saliente do canto inferior do
banco onde Miss Alabama e Miss Carolina do Sul olhavam, pela primeira vez nas
suas vidas, boquiabertas e de olhar esgazeado, para o cano de uma metralhadora
já com muito uso.
Boston.
Uma semana mais tarde
As
pancadas tornaram-se mais fortes. Mais enérgicas. Se, de início, podiam parecer
tímidas, agora Helen já não as podia ignorar. E até as pausas entre as pancadas
se tornaram mais curtas. O som parecia seguir um ritmo dissimulado cujo esquema
Helen tentou decifrar. Longa, longa, curta, mais longa. Azul, azul, amarelo,
azul-escuro. Como tantas vezes acontecia, os sons apareciam-lhe sob a forma de
cores. Helen estremeceu, como se sentisse a proximidade súbita de um zumbido.
Uma tonalidade vermelho-escura alastrou-se por trás das suas pálpebras
fechadas. Viu diante de si a imagem de um lago de sangue que, de repente,
desapareceu quando o vermelho se transformou em roxo. As pancadas tornaram-se
mais rápidas, ameaçando hipnotizá-la. Sentia-se como se tivesse bebido até ao
fim uma garrafa de vinho tinto. E era isso. A tonalidade da cor, que associava
ao zumbido, recordava-lhe a cor do vinho tinto. Um Bordeaux encorpado. Helen?
Estás a dormir? Helen! Uma voz metálica arrancou-a dos seus pensamentos. Como
se fosse alguém a falar no interior de uma lata de conserva: um cor-de-rosa
turvo». In Tibor Rode, O Vírus Mona Lisa, 2016, Topseller, 20/20Editora, 2016,
ISBN 978-989-883-989-3.
Cortesia
de Topseller/20/20E/JDACT