sexta-feira, 8 de julho de 2016

O Vírus Mona Lisa. Tibor Rode. «Não teve qualquer hipótese quando o autocarro travou de emergência. Foi, de imediato, catapultada para a frente, por entre as cabeças das suas colegas, que gritavam, indo parar três filas mais à frente»

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«(…) Iriam demorar meia hora a chegar ao hotel, segundo avisara o motorista do autocarro quando as portas do veículo se fecharam. Para acrescentar, na brincadeira, que isso seria possível se ele conseguisse tirar os olhos do espelho retrovisor e da bonita carga que transportava e não fossem todos parar ao fundo de um qualquer buraco. Do telemóvel de Miss Nova Iorque começou a sair música rap. Já se percorrera metade da viagem quando a embriagada Miss Florida, que era uma das rainhas de beleza mais jovens à escala nacional, tirou os sapatos e, pondo-se descalça em cima do banco, começou a girar as ancas ao som dos gritos de entusiasmo das restantes. A cada solavanco das estradas mexicanas, a representante do Estado do Sol era catapultada do banco impiedosamente macio e almofado contra o tecto do velho autocarro. Aos gritos de incitamento das suas rivais, Miss Florida abriu, exultante, o botão de cima do seu polo branco como a neve e posou de braços abertos ao céu para os flashes dos seus smartphones sem suspeitar de que as perspectivas de ganhar o título se dissolviam na atmosfera cheia de álcool.
Não teve qualquer hipótese quando o autocarro travou de emergência. Foi, de imediato, catapultada para a frente, por entre as cabeças das suas colegas, que gritavam, indo parar três filas mais à frente e batendo com o rosto nos encostos de cabeça, com a nuca no tecto, com o braço no vidro da janela e com os joelhos noutros corpos. Enquanto o autocarro rodava sobre si mesmo, a força centrífuga arremessou-a na direcção oposta juntamente com a bagagem, as malas de mão e as garrafas de bebidas. Já inconsciente, Miss Florida embateu numa das janelas e foi atirada para trás, deixando uma racha comprida no vidro e acabando por deslizar para debaixo de um dos bancos, como se fosse uma boneca de trapos, de pernas e braços estranhamente retorcidos. Não percebeu, por isso, o que depois aconteceu no autocarro, onde reinou um silêncio apenas interrompido por gemidos que mal se ouviam. Também não ouviu o tiro que atravessou o para-brisas, perigosamente perto da cabeça do motorista, nem reparou como ele abria a porta do autocarro a um comando hispânico. Não viu as pesadas botas de combate muito próximas da sua cabeça, que sangrava, nem ouviu as súplicas assustadas do motorista, que foi arrancado do seu lugar e atirado porta fora, indo parar à poeira da estrada. Miss Florida nem sentiu a dor penetrante que lhe teria causado o embate da cana do nariz na borda saliente do canto inferior do banco onde Miss Alabama e Miss Carolina do Sul olhavam, pela primeira vez nas suas vidas, boquiabertas e de olhar esgazeado, para o cano de uma metralhadora já com muito uso.

Boston. Uma semana mais tarde
As pancadas tornaram-se mais fortes. Mais enérgicas. Se, de início, podiam parecer tímidas, agora Helen já não as podia ignorar. E até as pausas entre as pancadas se tornaram mais curtas. O som parecia seguir um ritmo dissimulado cujo esquema Helen tentou decifrar. Longa, longa, curta, mais longa. Azul, azul, amarelo, azul-escuro. Como tantas vezes acontecia, os sons apareciam-lhe sob a forma de cores. Helen estremeceu, como se sentisse a proximidade súbita de um zumbido. Uma tonalidade vermelho-escura alastrou-se por trás das suas pálpebras fechadas. Viu diante de si a imagem de um lago de sangue que, de repente, desapareceu quando o vermelho se transformou em roxo. As pancadas tornaram-se mais rápidas, ameaçando hipnotizá-la. Sentia-se como se tivesse bebido até ao fim uma garrafa de vinho tinto. E era isso. A tonalidade da cor, que associava ao zumbido, recordava-lhe a cor do vinho tinto. Um Bordeaux encorpado. Helen? Estás a dormir? Helen! Uma voz metálica arrancou-a dos seus pensamentos. Como se fosse alguém a falar no interior de uma lata de conserva: um cor-de-rosa turvo». In Tibor Rode, O Vírus Mona Lisa, 2016, Topseller, 20/20Editora, 2016, ISBN 978-989-883-989-3.

Cortesia de Topseller/20/20E/JDACT