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Cai
chuva do céu cinzento
«(…)
É
noite.
Agora
é noite. A noite assemelha-se ao nada e tenho
A impressão
de que é sempre noite. Sempre, depois
de
depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre.
Tudo
dorme e é feliz, menos eu. Descanso um pouco,
sem
que ouse que durma. E grandes cabeças de
monstros
sem ser emergem confusas do fundo de
quem
sou. São dragões do Oriente do abismo, com
línguas
encarnadas de fora da lógica, com olhos
que
fitam sem vida a minha vida morta que os não
fita.
Minto sabendo que minto, mas certo de que
acredito.
Não são dragões do Oriente do abismo
que
me fitam. As suas línguas são vermelhas, mas
os
seus olhos não me fitam sem vida, decerto não
todos.
São as cabeças, os corpos, eles todos por inteiro,
são
o Caeiro, o Reis e o Campos. Podem ser sem
vida
os olhos dos dois primeiros, pois são sempre
sem
vida os olhos de um morto e os de um exilado
da
pátria, mas os do Campo são vivos, porque
são
vivos os olhos de um vencedor e ele vence-me.
Sempre
me vence.
Somos
todos nada, como bem dizia o Dr. Reis, mas eu ainda não sabia essa verdade
quando conheci o Cavaleiro e não é à humanidade que me refiro, é apenas a mim.
Com ele, a criança sozinha tinha companhia. A minha lucidez cega de criança
aprendera que a vida desmoronava a qualquer momento, mas ainda me faltava
perceber que ela nunca se volta a erguer. Deixava para trás mais do que podia alcançar,
uma quietude de alma que não voltaria a ter: a placidez dos fins de tarde
embalados pelos carrilhões da igreja dos Mártires, eram talvez outros, não,
eram com certeza esses, a mesa posta para o chá em chávenas de porcelana da
China, sabeis que toda a vida cabe numa paisagem de uma chávena de chá chinesa?,
a meia-luz do resto de dia filtrada pelos cortinados e toda a atenção das
criadas, das tias, da avó e da mamã. Foi assim durante quase dois anos e meio. O
mundo era eu.
Agora
sou nada. Há algum consolo nestas palavras, pois se agora sou nada, há a
certeza intrínseca, pelo menos a impressão, de que terei sido outra coisa em
algum momento, mesmo que breve. Talvez alguma coisa que valesse a pena.
Contudo, agora, não me resta nada mais do que não fazer nada mais. Mas há,
porventura, algo mais que posso fazer. Posso acreditar que um dia não fui nada.
Esse dia foram todos os dias antes de perder a mamã, aquele dia muito cedo em
que me vi reflectido nos seus olhos sem saber que era feliz até então e que a
felicidade tinha chegado ao fim. Era feliz e deixei de o ser mesmo sem ter tido
consciência disso durante o processo. A mamã casou-se no fim do ano de 1895 com
o noivo ausente, no mesmo dia em que completou 34 anos. Até então os seus olhos
eram tristes e melancólicos, mas eram apenas meus e nada mais me interessava.
Após
a morte do meu pai, com dois filhos nos braços, deve ter pensado que não se
casaria, ou, pelo menos, não voltaria a fazer um bom casamento. Talvez a morte
do meu irmão tenha ajudado a que o conseguisse. Naquele dia, o do casamento,
foi como se voltasse a viver. Percebi então, ou percebi depois, que entre a
morte do meu pai e o casamento com o meu novo papá, ela não passara de um
cadáver adiado. Eu olhava-a, dividido entre o deleite de ela ser só minha e o
sentimento de culpa do sobrevivente. A partir dali a depressão dela era a
minha. E sempre assim foi, mesmo depois de ela ter morrido. A mamã voltou a viver
a partir do segundo casamento, mas a minha depressão que nasceu da dela nunca
terminou e a partir daí cresceu em mim um tédio das emoções. Não obstante,
nunca deixei de amar, pois nunca deixei de a amar, mas desde essa altura sempre
tive o cuidado de não converter o afecto em amor. Nunca foi falta de paciência
ou incapacidade para amar e me fazer amar. O esforço é que era totalmente
desprovido de sentido. Existe prazer na dor, mas existe do mesmo modo um limite
para o prazer que conseguimos suportar. Além disso, não posso imaginar nada
mais entediante, depois de viver, do que amar e esperar pela recíproca». In
Sónia Louro, Fernando Pessoa, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-674-1.
Cortesia de
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