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O amigo da rainha
«(…) Matilde sorriu. Conhecia o jogo
e adivinhava as intenções da interlocutora. Era um pouco maçador, mas à amiga
era uma das raras pessoas que lhe dirigiam a fala por causa da sua fana de
bruxa má. Quando regressara da Índia pensara em voltar à sua terra natal, mas
receara que apesar de terem passados quase cinquenta anos desde que de lá partira,
ainda podia haver quem se lembrasse dela e, nestes novos tempos da Santa Inquisição
(maldita), preferiu continuar
ao serviço do senhor infante, duque de Beja, e sob a sua protecção instalara-se
em Olivença. Aí também havia quem se lembrasse de suas artimanhas, mas à protecção
do infante juntou-se a valia de dona Antónia Sousa que a apoiou e lhe concedeu
amizade que ela aceitou reconhecida. Sim, dona Antónia. Desde que comecei a
trabalhar para Vasco Melo, eu e meus amigos fazíamos representações por estas
terras da raia. Tens saudades do Gonçalo? Antónia não sabia, de facto, uma parte
importante da vida de Matilde, mas esta continuava a guardar o segredo.
Tentando disfarçar a ironia, respondeu: , tenho muitas saudades de Gonçalo. Foi
um bom companheiro. Terno, amável e sempre prestável. Não vos casastes? Sabeis
bem que não. E, como aceitaste viver com ele de um momento para o outro? Não tive
outro remédio. Mas achei-o logo bem-parecido, Não fiz nenhum sacrifício em aceitá-lo
para todo o serviço. Não arreceaste que ele não te quisesse. Os olhos da anciã
sorriram. brilhando por detrás dos óculos. Eu era uma mulher formosa e
irresistível. Eras, de facto. Gonçalo foi um homem com sorte, e Vasco o vosso
casamenteiro. D certa forma, dona Antónia. Pois, naquele momento não tinhas
grande alternativa. Entretanto chegou a infusão e as duas velhinhas bebericaram-na
pausadamente. Ainda não fora desta que Antónia conseguira saber detalhes adicionais
ao que já lhe tinha sido contado por Vasco há mais de quarenta e cinco anos.
A vida de Matilde cruzara-se com a
de Vasco no longínquo ano de 1498, quando fora condenada à morte por
enforcamento, em Melgaço, sob a acusação de ser bruxa e de ter provocado a
morte de uma fidalga. Mulher nova, então com vinte anos de idade, sempre se
dedicara a mezinhas e poções, e aprendera com a avó e uma tia a distinguir as
plantas e a saber as propriedades de cada uma; era uma ciência natural, mas a
ignorância das pessoas julgava-a sobrenatural e, na verdade, Matilde
aproveitava-se da credulidade da vizinhança; imprevidente, não se importara ao
ganhar fama de bruxa. Um dia uma amiga sua, criada de fidalgos abastados,
aparecera discretamente e contara-lhe que a filha de seu senhor emprenhara;
estava muito desgostosa e não podia levar a gravidez avante, pois assim que se
soubesse, seu pai a mataria. Trazia boas moedas e logo Matilde deu as ervas
apropriadas. No entanto, o caso correra mal e a fidalga finara-se esvaída em
sangue. A justiça apertara com a criada e esta denunciara a amiga. O fidalgo
pressionara o juiz e como este era amigo da maior rival de Matilde naquela
comarca, cedeu aos pedidos de sua amante, por entre beijos e afagos, para lhe
conceder o exclusivo dos negócios de bruxaria. No entanto, o corregedor
trabalhava para Vasco Melo e conseguira deter a execução até seu amigo
regressar de uma viagem à Mina». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de
Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.
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