domingo, 17 de julho de 2016

O Cavaleiro de Olivença João Paulo O. Costa. «A vida de Matilde cruzara-se com a de Vasco no longínquo ano de 1498, quando fora condenada à morte por enforcamento, em Melgaço, sob a acusação de ser bruxa e de ter provocado a morte de uma fidalga»

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O amigo da rainha
«(…) Matilde sorriu. Conhecia o jogo e adivinhava as intenções da interlocutora. Era um pouco maçador, mas à amiga era uma das raras pessoas que lhe dirigiam a fala por causa da sua fana de bruxa má. Quando regressara da Índia pensara em voltar à sua terra natal, mas receara que apesar de terem passados quase cinquenta anos desde que de lá partira, ainda podia haver quem se lembrasse dela e, nestes novos tempos da Santa Inquisição (maldita), preferiu continuar ao serviço do senhor infante, duque de Beja, e sob a sua protecção instalara-se em Olivença. Aí também havia quem se lembrasse de suas artimanhas, mas à protecção do infante juntou-se a valia de dona Antónia Sousa que a apoiou e lhe concedeu amizade que ela aceitou reconhecida. Sim, dona Antónia. Desde que comecei a trabalhar para Vasco Melo, eu e meus amigos fazíamos representações por estas terras da raia. Tens saudades do Gonçalo? Antónia não sabia, de facto, uma parte importante da vida de Matilde, mas esta continuava a guardar o segredo. Tentando disfarçar a ironia, respondeu: , tenho muitas saudades de Gonçalo. Foi um bom companheiro. Terno, amável e sempre prestável. Não vos casastes? Sabeis bem que não. E, como aceitaste viver com ele de um momento para o outro? Não tive outro remédio. Mas achei-o logo bem-parecido, Não fiz nenhum sacrifício em aceitá-lo para todo o serviço. Não arreceaste que ele não te quisesse. Os olhos da anciã sorriram. brilhando por detrás dos óculos. Eu era uma mulher formosa e irresistível. Eras, de facto. Gonçalo foi um homem com sorte, e Vasco o vosso casamenteiro. D certa forma, dona Antónia. Pois, naquele momento não tinhas grande alternativa. Entretanto chegou a infusão e as duas velhinhas bebericaram-na pausadamente. Ainda não fora desta que Antónia conseguira saber detalhes adicionais ao que já lhe tinha sido contado por Vasco há mais de quarenta e cinco anos.
A vida de Matilde cruzara-se com a de Vasco no longínquo ano de 1498, quando fora condenada à morte por enforcamento, em Melgaço, sob a acusação de ser bruxa e de ter provocado a morte de uma fidalga. Mulher nova, então com vinte anos de idade, sempre se dedicara a mezinhas e poções, e aprendera com a avó e uma tia a distinguir as plantas e a saber as propriedades de cada uma; era uma ciência natural, mas a ignorância das pessoas julgava-a sobrenatural e, na verdade, Matilde aproveitava-se da credulidade da vizinhança; imprevidente, não se importara ao ganhar fama de bruxa. Um dia uma amiga sua, criada de fidalgos abastados, aparecera discretamente e contara-lhe que a filha de seu senhor emprenhara; estava muito desgostosa e não podia levar a gravidez avante, pois assim que se soubesse, seu pai a mataria. Trazia boas moedas e logo Matilde deu as ervas apropriadas. No entanto, o caso correra mal e a fidalga finara-se esvaída em sangue. A justiça apertara com a criada e esta denunciara a amiga. O fidalgo pressionara o juiz e como este era amigo da maior rival de Matilde naquela comarca, cedeu aos pedidos de sua amante, por entre beijos e afagos, para lhe conceder o exclusivo dos negócios de bruxaria. No entanto, o corregedor trabalhava para Vasco Melo e conseguira deter a execução até seu amigo regressar de uma viagem à Mina». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT