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segunda-feira, 31 de março de 2014

Sociedade no 31. História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Actualmente entre nós a arte de cozinhar e comer, degrada-se, como tudo o mais, por falta de coesão nos gostos do público e por culpa dos inovadores acéfalos, para quem as coisas nacionais não valem a mais reles…»

jdact e wikipedia

«(…) E é assim que a mulher moderna, aquela que faz a verdadeira vida mundana, passa os dias, as semanas e os meses numa féerie deslumbrante de trajes onde a arte feminina e subtil da mulher traçou requintes de graça e beleza.
Mas é talvez o cabelo à garçonne que detém mais carisma, nesses anos 20. Em 1927, apesar dos cabelos à garçonne se terem implantado ainda antes dos anos 20 em França, referia-se a nova moda, como algo de profundamente revolucionário. Debatia-se, claro está, se eventualmente em Espanha ou em Portugal a moda invadia os hábitos e os costumes femininos. Negativa era a resposta da Voga.
Apesar de haver um grande número de mulheres que conduzia automóveis em Paris, (cerca de 2000 em 1927); 675 inscritas nas Faculdades de Ciências, bem como 897 em Medicina, isso não significava para o caso português qualquer analogia. No entanto, estes exemplos que a todo o momento se referiam, eram um claro incentivo a uma prática diferente por parte das nossas compatriotas.
Na culinária as influências francesas eram imensas. Fialho de Almeida em Os Gatos, em 1916, protesta: Actualmente entre nós a arte de cozinhar e comer, degrada-se, como tudo o mais, por falta de coesão nos gostos do público e por culpa dos inovadores acéfalos, para quem as coisas nacionais não valem a mais reles boutade anglo-gaulesa.
Bem se podia lamentar Fialho de Almeida das influências francesas e inglesas na cozinha e nos menus portugueses. Em 1926 na rubrica Culinária da Eva as receitas eram na base de Beignets de queijo, Biftecks au cresson e Abatises de peru de cabidela. A cozinha, como aliás tudo o mais, era francesa.
Mas havia a excepção que, sem confirmar a regra, já surgia no horizonte de influências. Referimo-nos às tendências americanas e inglesas denunciando pela primeira vez um outro tipo de atitudes que não as gaulesas
A partir de 1911 começam a surgir na revista Serões artigos sobre a educação das americanas. Nomeadamente no que respeita a coeducação, praticada nas escolas. A prática dos desportos em vários países europeus é descrita com grande sentido do pormenor em a Ilustração Portuguesa, ABC, Voga e Eva, No ABC de 1923 fala-se concretamente da Mulher Moderna como sendo uma condição adquirida pela norte-americana. Por sua vez, começam a surgir artigos sobre a alemã, a sua preparação física e apetência para o desporto.
Em 1908 a Ilustração Portuguesa já assinalava na mulher alemã uma forte inovação no que dizia respeito ao campo profissional. Eram escritoras, pintoras, escultoras, doutoras nas mais variadas áreas. A rapariga de hoje, o Backfisch, como familiarmente é designada, entrega-se às diversões do sport o que noutro tempo seria escandaloso; patina, joga o ténis, monta a cavalo, toma parte em regatas e certames de natação.
Mas o que é curioso é o modo como se refere esta alteração de hábitos nas raparigas alemãs. Era a influência norte-americana que se desenhava num-retraimento da influência francesa. Outro aspecto que se assinalava era a frequência por parte das mulheres alemãs, e aí era nítida a influência norte americana dos cafés da época. No Sul da Europa só o sector masculino se deslocava aos cafés». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de EColibri/JDACT

sexta-feira, 7 de março de 2014

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «O traje de desporto de manhã, o vestido que se veste a seguir ao traje desportivo; o das cinco da tarde, hora da elegância e do chá com as amigas. Finalmente, o vestido de noite, para as 'soirées’»

jdact

«(…) Em 1928, vinte e dois anos após, a Voga, a revista de moda mais arrojada dos anos 20 refere a mesma sedução pela pátria cultural: Para nós Paris é o expoente de dois imperialismos, o imperialismo da Arte e o imperialismo da Moda. As receitas literárias e as receitas de pintura vêm de lá. Também de lá vêm as receitas de vestir e as receitas de cozinha, a que dão o nome certo e sibilante de menu. Artistas e mulheres do mundo inteiro fitam em Paris os seus olhos deslumbrados. Paris é a Rainha da Arte e da Moda. Em tom de crítica, poderá comentar-se. Mas, o deslumbramento é real. Tanto em 1906 como em 1928. Tanto em 1890 como em 1930. Aliás, o imperialismo da Moda, segundo o articulista da Voga não tinha um, mas vários Napoleões. Os Poirets, os Paquins e tutti quanti. Deles depende quase que a própria moral, aquela moral que nos manda descer as saias, subir o decote e alongar as mangas, 1928.
Em moda os termos e expressões franceses eram tão frequentes que as senhoras era de bom tom que empregassem as palavras crepe morocain, voile, georgette, écharpes, cache-cois, com o mesmo desembaraço com que referiam expressões portuguesas. Não havia revista que não apresentasse duas páginas no mínimo sobre moda francesa. Na revista Eva, que se degladiava com a Voga pela conquista do público feminino, ao longo dos anos 20 até à absorção nos anos 30, a rubrica da Madame Fleury era uma panóplia de expressões como foulard de mousseline, tailleurs trois pièces, empiècement, paletot, plisnervure. E é assim que assistimos pela primeira vez em 1925 à introdução da palavra soutien-gorge, reduzida ao nosso vulgar e tão apelidado soutien. Mas para tornar mais complexa a estrutura da lingerie feminina, também se referia os corsets-ceintures tratava-se da ligação da cinta com o soutien-gorge. Era o fim do tão amado/odiado espartilho. Em 1925.
Restaurantes e cafés, casas de roupa, tudo apresentava um toque francês. A começar pelo nome. Au Rendez-Vous Des Gourmets, na Rua do Ouro, era restaurant, pâtisserie, servia thés-concerts, assim como services pour lunchs, mariages et soirées. La Parisienne, era uma loja de roupa sofisticada, que vendia robes, manteaux, chapeaux, lingerie. Um banho de sais Dermoxa Tonific era garantido como produto adoptado por todas as artistas parisienses. Os anos 20 acentuavam, no despontar da publicidade, essa influência gaulesa. Em Au Renard Argenté, vendiam-se peles e no Petit Paris, os últimos modelos parisienses apresentavam-se a um público feminino decerto mais seleccionado. Em A la Belle Mireille, no Largo da Estefânia, vendiam-se chapéus de palha e feltro. Mas tal como admitia a jornalista que assinava Françoise Gambart em 1928, na Eva, será que Paris poderia ser destronada pela América? Visionarismo, ou alguma percepção de sinais dispersos, na moda, nos costumes femininos que implicariam uma maior influência dos Estados Unidos?
As toilettes, por exemplo, eram estabelecidas consoante as horas do dia. Assim afirmavam as autoridades competentes na matéria em França. O requinte fazia-se hora a hora. O traje de desporto de manhã, o vestido que se veste a seguir ao traje desportivo; o das cinco da tarde, hora da elegância e do chá com as amigas. Finalmente, o vestido de noite, para as soirées. No guarda-roupa feminino havia também lugar para o célebre pijama ou deshabillée. Esta longa série de vestidos no guarda-roupa quotidiano insere-se numa estratégia de sedução que tende a simplificar-se à medida que entramos pelos anos 30 adentro. Fala-se abertamente da frivolidade da mulher chic, da sua apetência pelo luxo». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de EColibri/JDACT

segunda-feira, 1 de abril de 2013

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Mas em 1911 na rubrica Estrelas de Paris a “Ilustração Portuguesa” referia Colette Wiily, a tão polémica Colette, entregue ao ‘music-hall’. “Vagabonde”, o primeiro livro a ser traduzido desta autora em português…»

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«E este posicionamento francamente liberal denuncia uma visão mais progressiva do que aquela que os romances, também de origem francesa e de maior divulgação entre as senhoras, suporiam. Mas em 1911 na rubrica Estrelas de Paris a Ilustração Portuguesa
referia Colette Wiily, a tão polémica Colette, entregue ao music-hall. Vagabonde, o primeiro livro a ser traduzido desta autora em português, só nos anos 40, fazia furor na capital parisiense. Nessa época Colette tinha-se divorciado de Willy e era enquanto divorciada uma mulher livre e independente que se apresentava ao público. Mais uma vez a Ilustração Portuguesa se faz eco de uma posição extremamente avançada quando refere:
  • Essa preocupação que tem sempre o psicólogo macho de fazer de criatura do outro sexo um ente à sua imagem, modificando-a apenas para mais submissa, mais humilde, mais amorável ou mais escrava, não poderia existir de resto nos livros da autora de Vagabonde. Era apresenta-nos a mulher tal como ela é e tal como poucos de nós sabemos vê-la.
Mas vai-se mais longe, nesta análise que data de 1911. O elogio de Claudine, ou de Retraite Sentimentale pondera no ponto mais polémico de toda a discussão sobre a mulher no princípio do século: Há ou não o direito à sensualidade, ao instinto, ao eros em suma? O articulista diz claramente que sim. Chamava-se Paulo Osório e assinava o artigo em Setembro de 1911. A Ilustração Portuguesa era sem dúvida a grande revista de divulgação de fait divers que atravessou os primeiros decénios do século XX. Até que ponto estes artigos avançados em relação aos modos e costumes nacionais não alteravam, paulatinamente, as condutas? Tal como dizia Colette:
  • Je danserai encore sur ra scène, je danserai nue ou habillée, pour le seul plaisir de danser, d'accorder mes gestes au rythme de ra musique.
A citação é significativamente da Ilustração Portuguesa. Mas a revista mantém um diálogo extremamente profícuo com as correntes de moda da época, no que aliás é acompanhada pela maior parte dos periódicos que se dedicam à mulher. A moda é francesa, como de resto os costumes, o modo de falar, o modo de cozinhar, as expressões. Tudo se importava de França. o chic envolvia toda uma ambiência. Vestia-se, na alta sociedade vestidos de Redfern e Bechoft David. Paris já assinou o seu último decreto sobre a moda. Diane de Pougy, a célebre mundana artista, arvorou-a como um estandarte. Dizia-se em 1910.

De França também advinham modas bem arrojadas como a da prática de hipismo. Eram as amazonas que se passeavam ao domingo por Lisboa no Campo Grande ou na Tapada. A notícia é de 1913. As meninas que assim ousavam praticar um desporto considerado masculino por excelência pertenciam às melhores famílias portuguesas. Mas em 1914 falava-se na prática de esgrima, desta feita no Porto. Não seria de espantar que Lisboa, à imitação do Porto, também contasse com classes de esgrima. Faziam-se excursões a Paris. Em 1906, por exemplo, referia-se a visita à grande capital da França, essa monumental Paris, vocação de todo o mundo. Na moda, quantas vezes as legendas nem sequer são traduzidas dos figurinos originais para não perderem a magia da língua. Era o grande sonho, o esplendor do quotidiano em Paris». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

domingo, 20 de janeiro de 2013

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Na “Ilustração Portuguesa” era usual fazerem-se descrições muito pormenorizadas das peças que com mais êxito se apresentavam em Paris. Em 1913 “Bagatelle“de Paul Hervieu fazia sensação com a análise de um triângulo amoroso…»


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«Para além de Teixeira Gomes e de Ferro, outras vozes falavam  da emancipação feminina se recolhermos os exemplos dos jornais e revistas que chegavam ao universo feminino burguês. Eram muitos os jornais e revistas que se dedicavam a um público feminino. Desde O Jornal da Mulher de Albertina Paraíso que saiu em 1910, com rubricas em francês, a subentender que as leitoras já saberiam na sua maioria ler a língua de Victor Hugo, em Choses et Autres e Paris-Nouvelles. Em 1910 como nos anos 20, em final do século como no princípio dos anos 30, as rúbricas em francês inseriam-se num certo gosto seleccionado de classe, de casta mesmo, que fazia parte do chic. A França era a pátria da moda e do bom gosto. O cinema, apesar de importado da América, não bastava para alterar os hábitos de consumo da cultura e dos costumes franceses.
Moda Elegante, Enciclopédia da Mulher em 1917, A Rainha da Moda em 1922-23, Eva a partir de 1925, esta revista com grande difusão, Revista Feminina em 1926, Vida Elegante em 1926, A Mulher em 1927, Voga a partir de 1927, também com uma larga difusão no universo feminino, Vida Mundana a partir de 1914 e, sobretudo, a Ilustração Portuguesa a partir de princípios do século, são as revistas que se detectaram com maior audiência.
Alguns exemplos antes de procedermos a uma análise detalhada das influências estrangeiras em a Voga, a Eva e a Ilustração Portuguesa. Por vezes a importância de um romance francês ia ao ponto de se recomendarem condutas, de se acertarem comportamentos. O livro de Marcel Prévost, Les anges gardiens, era encarado como a prova de que as preceptoras poderiam ter um efeito pernicioso nas jovens filhas de família, em O Jornal da Mulher. Também, no caso da educação feminina se citava Condorcet, teórico iluminista do século XVIII.
Na Ilustração Portuguesa era usual fazerem-se descrições muito pormenorizadas das peças que com mais êxito se apresentavam em Paris. Em 1913 Bagatelle de Paul Hervieu fazia sensação com a análise de um triângulo amoroso numa média-alta classe burguesa da sociedade francesa. As considerações da Ilustração Portuguesa não se fazem esperar. Na Bagatelle, o drama passa-se entre uma mulher superiormente honesta e uma outra amorosa e fraca, que sofrem durante três actos os apetites, as hipocrisias, a velhacaria de dois pulhas. A novidade, porventura, não estará na temática, que apesar de ousada para a época, não era alheia à ficção portuguesa, tendo em conta a obra de Abel Botelho, na sua enciclopédica Patologia Social. A novidade encontra-se no modo como se desculpabiliza a mulher, ou porque é fraca nas suas paixões terrenas ou porque é honesta. E este posicionamento francamente liberal denuncia uma visão mais progressiva do que aquela que os romances, também de origem francesa e de maior divulgação entre as senhoras, suporiam». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

sábado, 8 de dezembro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. « As mulheres eram divididas consoante os pintores modernistas, Matisse, Picasso ou então, segundo os grandes costureiros da época, Poiret, Lanvin. Pela primeira vez se faz a apologia da mulher feia»


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«Em contraposição à mulher-menina surge a mulher-mãe, Belle Bennett, de uma grande calma, não perturbando nem comovendo, apenas irradiando paz e segurança em seu redor.  Mas a mulher frágil é, segundo António Ferro, nitidamente dominante sobre os demais paradigmas. "As mulheres, na América, são bebés: andam sempre ao colo dos homens." É óbvio que o autor ao retratar a mulher americana não é inocente. Seria desejável que a portuguesa pudesse construir um universo de representação social tão "saudável" como a norte-americana.
Aliás, numa outra obra de 1917, As Grandes Trágicas do Silêncio, a mulher em estado puro, mítica, é personificada em Francesca Bertini, entre a tranquilidade e o desassossego. Os olhos inspiram a tranquilidade mas os dedos são nervosos. Esta figura feminina já por si foge dos padrões usuais, já que a mulher tradicional deveria ser por excelência calma, servil, obediente, passiva. Os corpos são esguios. São mulheres que não partilham em nada o estar habitual das portuguesas.
  • "Francesca Bertini encarna o Amor no estado puro e consequentemente ela encarna a Mulher no que ela tem de mais essencial".
Outro tipo feminino que António Ferro contempla é o da mulher/desejo. O corpo, ao mesmo tempo que é objecto de desejo, é simultaneamente objecto de perdição. Trata-se de Pina Menichelli, a estrela italiana que atrai como um abismo.
  • "Pina tem a beleza do mal. O mal é mais forte, mais insinuante do que o bem”.
Embora o desejo não deixe de ser considerado matéria ingrata e como tal de difícil abordagem, já é possível em António Ferro encontrar na beleza corporal uma legitimação do desejo, do homem em relação à mulher e vice-versa. Quando se trata de dividir as mulheres consoante os beijos que elas inspiravam, falava-se no beijo cristão de Borelli, em contraposição ao beijo de Satanás de Pina. Pura matéria de gosto, para o autor.
Já em a Idade do Jazz Band de 1923 Ferro se referia ao artifício como o que constituía o traço verdadeiramente natural nos anos 20. As mulheres eram divididas consoante os pintores modernistas, Matisse, Picasso ou então, segundo os grandes costureiros da época, Poiret, Lanvin. Pela primeira vez se faz a apologia da mulher feia:
  • "A mulher feia é a mulher rebelde, original".
Poderemos questionar de que maneira António Ferro serve de contraponto às vozes que teimavam em ver na mulher um ser que unicamente servia para casar, ter filhos e ser boa dona de casa. Contudo, é significativo que uma voz mencionasse através de exemplos recolhidos nos Estados Unidos uma outra forma de estar no feminino. Também Teixeira Gomes em Sabina Freire (1905) apresenta um outro tipo de mulher: emancipada parisiense, acutilante na crítica ao sistema social e político português, visto que se casa com um algarvio, acaba por abandonar o marido que se moldava a uma mãe prepotente.
A tragédia deflagra quando a bebida envenenada que preparara para a sogra é bebida pelo próprio marido. Urbano Tavares Rodrigues, que estudou profundamente Teixeira Gomes, encontra neste autor uma "atitude  esclarecidamente feminista". Em Sabina Freire a mulher emancipada ousa falar ao marido das experiências sexuais anteriores ao casamento, posição demasiadamente radical para os inícios do século XX no nosso país.
Para além de Teixeira Gomes e de Ferro, outras vozes falavam  da emancipação feminina se recolhermos os exemplos dos jornais e revistas que chegavam ao universo feminino burguês». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

sábado, 17 de novembro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Numa cidade que vive em função do cinema, as suas habitantes estão na vida como se estivessem na tela. O que desde logo se encontra é a noção de que as mulheres são espontâneas, decididas e saudáveis o que retira o carácter negativo que à emancipada normalmente se atribuía»




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«Clément Vautel é um autor extremamente crítico e irónico em relação à emancipada. Num dos seus romances, Minha Mulher Não Quer Filhos, título já por si sugestivo de uma atitude inovadora perante o modelo tradicional de mãe/esposa, Vautel apresenta a protagonista como uma mulher fútil, egoísta, e imoral. Gozar a manhã na cama; a tarde num chá da moda, numa sala de concertos, no costureiro, na modista, em qualquer potiniere mundana ou no dancing, a noite no teatro, no music-hall ou no cabaré: tal era o seu programa.
De uma forma geral os romances estrangeiros mais lidos apresentavam uma visão maniqueísta da realidade. Isto é, a mulher na sua sede de emancipação torna-se fútil, imoral, desligada do lar e da família. Em oposição ao caminho da dignidade identificado com o papel tradicional, aparece a mulher perdida e esvaziada de objectivos espirituais. No caso da protagonista de Minha Mulher Não Quer Filhos refere-se o facto de esta se ter recusado ao marido na própria noite de núpcias, o que revela uma autonomia e um sentido de recusa dos modelos tradicionais de comportamento.
Em conclusão, e ainda a propósito deste romance, a imagem da amante é dignificada face a uma feição tão negativa da esposa, na medida em que assume o papel tradicional de mulher contemplativa e dócil.
A mulher moderna, que nos países estrangeiros começa a interessar-se pelo desporto, e ridicularizada por Vautel, na medida em que essa actividade era considerada eminentemente masculina. Por exemplo, em Uma Mulher de Temperamento, apresenta-nos uma jovem de cabelos curtos, à garçonne, que adora actividades como o salto á vara ou o futebol e que é retratada como uma excêntrica que usa camisola e saia pelos joelhos.
No mesmo romance, a mãe da jovem, que até determinada altura mantivera uma postura de dona de casa exemplar, sofre uma alteração de comportamento, passando a levar uma vida de artista. Estes modelos femininos transmitidos através de obras de autores franceses são por sua vez alvo de crítica por parte dos autores portugueses que os acham perniciosos. Por exemplo, em Uma Divorciada de Sousa Costa, a protagonista é especialmente influenciada pelas nleituras de autores franceses, o que lhe inspira atitudes ousadas. E evidente que essa crítica tem subjacente o reconhecimento do esboço da influência estrangeira nos comportamentos.
Em contraposição com estas atitudes moralistas mais radicais, existem outras fontes que disponibilizam informações não tão catastróficas sobre a mulher estrangeira. António Ferro foi um dos autores que ao debruçar-se sobre essa realidade se mostrou mais entusiasta com as transformações existentes.
Em Hollywood Capital das Imagens, as mulheres surgem-nos conduzindo os seus automóveis e fumando cigarros longos, sinal de uma independência impensável no Portugal dos anos 20.

  • Numa cidade que vive em função do cinema, as suas habitantes estão na vida como se estivessem na tela. O que desde logo se encontra é a noção de que as mulheres são espontâneas, decididas e saudáveis o que retira o carácter negativo que à emancipada normalmente se atribuía. A beleza impera sobre tudo o mais, ofuscando a vulgaridade das pessoas comuns. Irreais, distantes, tão irreais e tão distantes na vida como no ecrã...

O paradigma da mulher em António Ferro é o da mulher-menina consubstanciado em Mary Pickford, boneca frágil, que procura nos homens o apoio paterno. Em contraposição à mulher-menina surge a mulher-mãe, Belle Bennett, de uma grande calma, não perturbando nem comovendo, apenas irradiando paz e segurança em seu redor». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Colette era a autora favorita das donzelas. Lia-se La Retraite Sentimentale no original. Se no cinema se preferia o de origem norte-americana, o francês não deixava de se destacar. Il est charmant, era o título de um grande êxito da época, em 1922»


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«La Garçonne, o polémico romance de Victor Margueritte, teve uma tradução brasileira em 1923, mas em 1927 é apresentado, adaptado ao teatro no Trindade. Na notícia que do acontecimento se fez refere-se o ‘escandaloso romance’ de Victor Margueritte. A estoria, do romance e da peça, não é especialmente escandalosa. Monica Lerbier, interpretada no palco por Lucília Simões, o protótipo da rapariga moderna, abandona a família entregando-se à droga, opio e cocaína; no final, acaba por se regenerar pelo amor sério de um homem. Se La Garçonne de Margueritte não se difundiu no nosso país por via literária tendo em conta a tradução brasileira, teve de certeza repercussões em Lisboa, por via teatral. Henri Ardel, nome bem conhecido em finais dos anos 10 e ao longo dos anos 20, católico moralizante, constava das bibliotecas das senhoras.
Em O Amor tem duas Caras, drama pós romântico, onde se defrontam duas mulheres, a mensagem moralista é dominante. O padrão da mulher bonita, estouvada, desejada pelo sexo oposto, atraída pela perdição máxima dos anos 20, o universo do cinema, opõe-se ao padrão da mulher séria, corajosa, não tão bonita nem tão apreciada pelos homens. Num drama em jeito de tragedia a heroína boa morre ao salvar uma criança e a má expiará até ao fim da vida a culpabilização desse acto.
O papel da mulher nos romances estrangeiros de maior divulgação em Portugal e junto da população feminina alfabetizada é sempre enaltecido como fada do lar, amante fidelíssima, esposa exemplar. A contraposição a esta imagem encontra-se na mulher, geralmente jovem, que se expõe aos riscos de uma vida não integrada na família, ou por querer trabalhar fora de casa, ou por ser artista, e essa condição é dificilmente aceite para uma mentalidade mais conservadora.
Também é frequente surgir a figura da irmã solteira que vela pelo bem estar da família. Um outro protótipo é o da mulher independente e masculinizada que invariavelmente é infeliz por ter tomado essa opção na vida. Neste romance, a emancipada e sem dúvida uma mulher triste, ama um homem casado, lê volumes de psicologia e interessa-se pela representação de La Garçonne no Odéon de Paris.
Outro traço particular da mulher emancipada e a cultura. Nelinha Sampaio, personagem de Memorias Duma Mulher da Época de Diana de Liz, traduz Ibsen e sabe distinguir Van Dick de Botticelli. Maria Moniz, outra personagem, cita com grande facilidade um certo número de autores.
A erudita não é vista com bons olhos, E mesmo ridicularizada. Como em O Baile dos Bastinhos de Armando Ferreira da série Lisboa Sem Camisa embora já publicado em 1935. Por um lado fala-se da influência nítida do cinema. Compravam-se retratos de Ramon Novarro e charutos de Monterrey. A Fifi e a Loló copiavam os costumes franceses e deixavam-se seduzir pelo estilo dos actores norte-americanos.
Estava-se em finais dos anos 20. O Moisés principiava a embirrar com a quantidade de gente que a Fifi agora conhecia. Era o Douglas, o Clive, o Boyer, e ainda por cima conhecendo-lhes as intimidades, a cor das gravatas, a marca dos cigarros, o dia do nascimento...
Colette era a autora favorita das donzelas. Lia-se La Retraite Sentimentale no original. Se no cinema se preferia o de origem norte-americana, o francês não deixava de se destacar. Il est charmant, era o título de um grande êxito da época, em 1922.
La Garçonne vai configurar um modelo feminino. Por exemplo, em O Amor à Parisiense de Clément Vautel surge-nos a ‘menina’ emancipada que sai amiudadamente à noite, o que era criticável do ponto de vista moral, e que usava ‘o cabelo à Joãozinho, os braços ao léu, decote por cima e por baixo’. A expressão ‘à Joãozinho’ que teve longa vida é de certo modo a tradução de ‘à garçonne’». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «É um facto que a mulher burguesa lia romances, folheava revistas, ia à modista vestir-se segundo os cânones estrangeiros. Que influências afinal? Que estratégias de sedução? Que níveis de apropriação do exterior e em que domínios?»


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«Há que pensar contudo num contexto epocal. Porquê uma tão longa travessia entre 1890 e 1930? Porque apesar das heterogeneidades, existe uma homogeneidade nestes quarenta anos. O final do século pode de algum modo ser o sintoma de uma profunda crise social com expressão política na contestação da monarquia. Assim como 1930 é o início de um longo período salazarista. Entre as crises institucionais da monarquia e o Estado Novo. Com um início do século que só principia verdadeiramente após a primeira Guerra Mundial de 14-18.
Também do ponto de vista dos comportamentos mentais, encontramos na mulher de final do seculo e até 1918 uma mesma postura tradicional, que os anos 20 de algum modo vão revolucionar: numa determinada classe social mais elevada. Porque em níveis inferiores as mudanças não são significativas.
Que mulher burguesa, a de final do século? Com uma educação sobretudo familiar, em trânsito entre a casa dos pais e a do marido, a nossa burguesa é a coqueluche de um espaço doméstico, mãe e procriadora. Não um ser pensante, com interesses variados para além da modista, da casa e das mundanidades.
Os anos 20 iniciam paulatinamente uma outra forma de estar da mulher burguesa. Desde as modas que além Pirenéus atravessam fulgurantemente, através de revistas da especialidade, uma Lisboa bem mais pacata, até à pequena elite de intelectuais que frequentavam a Universidade, escreviam poemas e romances ou tentavam, de tribunas feministas, intervir politicamente.
Tudo isto numa santa paz e numa moderação bem portuguesas.
Procurámos percorrer trilhos. Sinuosos sem dúvida. Mas ainda assim ocorreu-nos partir a conquista desse quotidiano. O resultado é a tentativa de reconstituição de um espaço de estar e de sentir.

Influências estrangeiras nos modelos de conduta
Difícil será a abordagem dos modelos estrangeiros que influenciaram decisivamente ou de uma forma assinalável o nosso modo de ser quotidiano no período que nos interessa de 1890 a 1930. De qualquer forma, as influências só se manifestaram nas classes com um maior poderio económico, aquelas mesmas que usufruíam do ponto de vista da moda e da educação os ditames provenientes de França, de Inglaterra ou dos Estados Unidos.
É um facto que a mulher burguesa lia romances, folheava revistas, ia à modista vestir-se segundo os cânones estrangeiros. Que influências afinal? Que estratégias de sedução? Que níveis de apropriação do exterior e em que domínios?
De entre os autores lidos sondámos os que na realidade penetravam ao nível da interioridade doméstica. Pela frequência com que eram traduzidos, inseridos que se encontravam em colecções populares, de grande audiência. Procurámos revistas femininas. Detectámos as informações mais precisas e incisivas sobre a realidade da mulher burguesa.
Se o modelo francês imperava nitidamente sobre os demais entre 1890 e 1930, os anos 20 anunciam a penetração da influência do modelo norte americano e inglês nos nossos hábitos e costumes. Através da via do cinema, sobretudo. E era também o mundo profissional que se abria pela primeira vez a mulher burguesa, por exemplo.
Toda a pesquisa no quadro das mentalidades e morosa e difícil. Um primeiro aspecto: o historiador tem de ser um pesquisador atento do quotidiano, para poder analisá-lo e recriá-lo perante o leitor.
Há uma questão inicial a considerar quando se dispõe de problemáticas diversas no que respeita às influências estrangeiras nos modelos de comportamento femininos: o modelo francês é dominante sobre os demais. O que aliás não é particularmente uma novidade tendo em conta a tradicional proximidade cultural da França em relação ao nosso País. As leituras que se faziam, desde a adolescência até à idade adulta, eram de autores franceses. As bibliotecas de lar, destinadas às senhoras, eram no essencial de autores de língua francesa. Ao nível dos comportamentos também se procurava, na moda, no estar, uma aproximação com a França. Em meados do século XIX as leituras femininas rondavam em torno de Balzac, Sue, Sand, Dumas, Scribe, Arlincourt. No final do século ainda se liam esses nomes, e outros se adiantavam.
Balzac, sempre ele, Zola, Victor Hugo, Anatole France ou mesmo em André Theuriet em os títulos Ciúmes de Mulher ou Maria, a Infeliz.

Musset não era esquecido. Paul Margueritte também não. Nos anos 20 as preferências vão para Henri Ardel, Clement Vautel e Maurice Dekobra. Colette era lida em francês pelas camadas mais cultas». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

terça-feira, 4 de setembro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Estas as personagens que intervêm no palco desta obra, desde a burguesa bem firmada a um status, casada, mãe de filhos. Esta a personagem privilegiada. Até as ‘outras’. As divorciadas, emancipadas, artistas, intelectuais e feministas»



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«Não há neste contexto uma estimativa exacta do que se lia. Mas pelo enorme conjunto de romances que nos foi dado reunir, pelas colecções que consultámos não nos foi difícil perscrutar os autores mais populares.
Influências francesas: eis um primeiro aspecto adquirido. As leituras, os hábitos, os modos da burguesa lisboeta eram ditados por Paris.
Num segundo ponto houve que inserir a mulher em contextos muito específicos. A educação dessa mulher burguesa, desde a puberdade até ao casamento; do intricado e complexo processo do namoro até ao casamento.
Mas havia situações que nesses inícios do século XX contextuavam a mulher de modo diferente: aí encontramos as primícias do feminismo em Portugal, brandos costumes, brandas reivindicações.
Também nos contextos, mas marginal, existia a mulher que se divorciava, a adúltera, a prostituta e a artista de cabaret ou revista. Essa marginalidade era bem diferente caso fosse uma divorciada ou uma prostituta. Mas a sociedade condenava sob diversos graus toda e qualquer mulher que se não regesse pelas normas comuns. A emancipada era igualmente um caso para condenação. Usualmente recusava-se a casar e pretendia livremente escolher o seu trajecto profissional.
Estas as personagens que intervêm no palco desta obra, desde a burguesa bem firmada a um status, casada, mãe de filhos. Esta a personagem privilegiada. Até as ‘outras’. As divorciadas, emancipadas, artistas, intelectuais e feministas.
A mulher burguesa tinha um determinado gosto estético. Haveria que encontrá-lo, percepcioná-lo. Na moda, na publicidade que nesses primeiros anos do século começa a despontar com uma força inesperada, até ao cinema.
A moda é a grande fixação da burguesa. A ida à modista era um trajecto obrigatório nesses passeios ao Chiado que, também eles, eram obrigatórios.
Mas através da publicidade captam-se as preocupações dessa mulher, já entrada nos trinta e nos quarenta e com problemas cosméticos ou de linha estética. Afinal, problemas comuns à mulher de hoje mas com um grau de formulação bem diferente. O cinema era o outro lado, a América, o novo mundo, o sonho.
Mas e o corpo? Esse corpo que seduzia e que paria. O corpo e a sua linguagem erótica. Que erotismo possível nesses anos? Quais os tabus e as transgressões? Tudo era tabu, numa sociedade moralista e moralizante como era particularmente a portuguesa nesse entrecho. Mas a sexualidade existia e será importante apreender esse aspecto mais difícil de captação dos comportamentos femininos. E a higiene? Os hábitos de higienização também partilham do modo como se tratava o corpo. Dai a inserção de um capítulo específico.
A mulher que à sua maneira procurou fugir do efémero de uma vida ritualizante, de um quotidiano monótono. Era a artista do teatro declamado. Era a pintora, a escultora, a poetisa, a escritora. A advogada. A intelectual, em suma. Usualmente pertencia a estratos sociais elevados que permitiam que os estudos superiores ou a especialização fosse feita em Paris, a capital dos sonhos.
Detivemo-nos sobretudo em Florbela Espanca, o grande nome deste trajecto que nos conduziu de 1890 a 1930. Mas não nos esquecemos de muitas outras. A mulher inicia com o século XX um percurso de cumplicidades com universos com os quais nunca tinha partilhado. Desde o poder político, às profissões liberais, desde o estatuto de emancipada (de pais e maridos) até a intelectual, há um caminho mais permissivo que se inicia». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

sábado, 1 de setembro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Será que os burgueses em Portugal se consideravam uma burguesia? Haveria uma consciência de classe? E sobretudo, para a realização desta obra, onde acabava o povo e se iniciava a burguesia?»



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«Esta obra abrange as datas de 1890 a 1930. A designação ‘História das Nossas Avós’, Retrato da Burguesa em Lisboa, pretende delimitar territórios, situar fronteiras, gizar criteriosamente um campo de material historiográfico.
Antes de se entrar no porquê das datas escolhidas para balizar o trabalho de pesquisa, há que encontrar a explicação de um universo temático.
‘História das Nossas Avós’, Retrato da Burguesa em Lisboa. Um retrato pressupõe uma fidelidade, uma apreensão nítida da realidade. Ora, numa história das mentalidades difícil será dilucidarmos essa nitidez em contornos exactos, tendo em conta a complexidade das questões, as intimidades que se elegem e que na maior parte dos casos têm a ver com um espaço doméstico e privado. Contudo, procurámos realizar esse retrato. E disponibilizamo-nos para as grandes questões que atravessam o quotidiano da mulher burguesa, as suas vivências e realidades.
É óbvio que nos preocupámos em seleccionar a burguesa de uma classe média/alta, delimitando à partida territórios sociais. O porquê desta escolha, encontra-se em grande parte no destinatário privilegiado das fontes consultadas. Desde as revistas de moda, passando pelos manuais de civilidade, a literatura disponível, os inúmeros folhetos que circularam pelas nossas mãos, tudo se destinava a essa mulher algo ociosa da média e grande burguesia, embora a pequeno burguesa eventualmente também partilhasse em parte do universo mental daqueloutra de escalões mais elevados.
E, neste entrecho, há que salientar que é toda uma historia do quotidiano que se não encontra elaborada senão parcialmente em monografias que se vão publicando esparsamente, ou em artigos de revistas especializadas. Mas apreender o quotidiano da Burguesa, da Lisboeta mais precisamente entre 1890 e 1930, é tarefa difícil tendo em conta que as fontes nunca foram trabalhadas sistematicamente. Foram alguns anos árduos de pesquisa na Biblioteca Nacional, para além de visitas regulares à Biblioteca Nacional de Paris, onde se encontraram caminhos importantes sobre a mulher parisiense.
Alguns estudos publicados em França, Inglaterra, Estados Unidos e Espanha sobre a Mulher em períodos não muito distantes daqueles que nos preocuparam, constituíram, do ponto de vista metodológico, obras fundamentais de apoio.
Desde logo, interessou-nos percorrer um trilho de preocupações.

Primeira questão: qual a conotação de burguês/burguesa? No século XIX, burguês evocava uma posição económico-social, quer com um significado moral quer com uma conotação intelectual. A burguesa não era nem a descendente da nobreza, classe em franca degenerescência com o finalizar do século XIX, nem a operária ou a mulher trabalhadora.
Será que os burgueses em Portugal se consideravam uma burguesia? Haveria uma consciência de classe? E sobretudo, para a realização desta obra, onde acabava o povo e se iniciava a burguesia? A questão colocada assim poderá parecer pouco pertinente, mas as fronteiras tiveram de ser gizadas. A burguesa que elegemos nesta obra não usufruía qualquer salário, com excepção da intelectual, espécie então assaz rara, que possuía bens próprios herdados ou adquiridos por casamento. Não se trata da ‘remediada’ ou daqueloutra que se priva de ter uma criada, por falta de rendimentos. É a classe media e media/ alta que nos interessou preferencialmente.
Metodologicamente, iniciámos um percurso pelas influências estrangeiras nos modelos de conduta da mulher burguesa. Aqui deparámo-nos com um primeiro problema: como surpreender esses modelos de conduta, como os filtrar. As leituras da burguesa. Que leituras fazia, com que devaneios, sonhos, ambições se deparava?
Os autores lidos e inseridos nas bibliotecas de senhoras, maioritariamente franceses, apontam para uma ideologia conservadora com uma coloração cor de rosa no modo como se propiciavam situações amorosas.
Encontramo-nos no território dúbio, mas aliciante da historia das mentalidades. Poderemos dizer, como J. le Goff, que:

  • ‘o nível de historia das mentalidades é o do quotidiano é do automático, é aquilo que escapa aos sujeitos individuais da historia porque revelador do conteúdo impessoal do seu pensamento’.
Ou, ainda, como nos refere Joel Serrão acerca da problemática das mulheres:

  • ‘Antes de mais, importa averbar que a problemática ante a qual se está situado é abordável ou numa perspectiva de historia cultural ou de historia das mentalidades ou, ainda, no entrecruzamento das duas’.

In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT

sábado, 4 de junho de 2011

Florbela Espanca: Parte I. O período em que viveu foi conturbado em Portugal, quase só houve tempo para mudanças, tanto a nível histórico-político, quanto cultural. «O pendor nocturno revela-se nas tonalidades escolhidas, desde os tons de roxos até aos soturnos negros. A propensão para a morte, a noite, o negrume, a tristeza relva desse desequilíbrio...»

(1894-1930)
Vila Viçosa
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Nascida no dia 8 de Dezembro (o mesmo dia do seu suicídio), escreve os primeiros poemas por volta de 1915. A sua poesia por um lado liga-se a ambivalências finisseculares, por outro dramatiza a problemática do eu de um modo muito particular.
O Livro das Mágoas abre com um soneto decadentista por excelência, onde a mágoa, a dor e a saudade participam no mesmo universo convivencial de tortura e decadentismo. A tónica finissecular é-nos conferida pela propensão para o choro:

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!

No entanto, não menos importância do que a assumpção de uma tristeza intrínseca, é a definição de um espaço poético original e único, um espaço de eleição diríamos melhor. Esse espaço é definido pela própria poetisa:

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,

E neste entrecho surge-nos uma primeira contradição. A poesia recém-eleita a uma área de primazia é também e sobretudo a poesia do nada:

Acordo do meu sonho… E não sou nada!…

A relação do poeta com a sua escrita é dolorida, chorada:

Calaram-se os poetas, tristemente…
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao Céu!…

Aliás, é porque se é poeta que se alcança a Dor. A poesia é base de definição de uma atitude de sofrimento. Há um certo deslumbramento por uma sorte não alcançada que é ainda e sobretudo a sugestão de um local de eleição:

Eu sou a que no mundo anda perdida,
sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…

Um pessimismo tão fundo enleia-se na capacidade de sofrimento único, desde a alusão à vivência sozinha no «Castelo da Dor», até à categoria de Castelã da tristeza a que se alcandora.

Cortesia de osmeussonetos 

Problematizemos a relação que existe entre a poetisa e a escrita. Por um lado, existe a noção de que o Poeta é um sonhador, um criador de ilusões. Por outro, a de que poesia é a palavra iniciática, mas inaudível para a maior parte das pessoas. O poeta é um ser solitário por excelência. É aquele que fala da sua Dor e a transporta para um infinito. Quanto maior é o génio, mais pode transportá-lo a uma outra cultura, a uma maior capacidade de divinização. A vida é uma desgraça que se assume com imensa dor, uma infinita capacidade de a chorar. Há uma tomada de consciência de carácter trágico:

Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou como tu, um riso desgraçado!

Um constante conceber da vida como uma antecâmara da morte: esta não escolhe idades. Preexiste a um estádio de vida. Encontra-se sempre latente. A morte é a permanente temática em Florbela Espanca:

É tão triste morrer na minha idade!

E aqui remetemo-nos para a poesia finissecular de um António Nobre, cujos constantes apelos à morte produzem uma espécie de elegia dos comportamentos, suicídio antecipado, morte desejada. Penitência que se arranja na soturnidade das ambiências:

E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir: “Que linda a vida!…
Responde a minha Dor: “Que linda a cova!

Morte física ou onde se quebra o elo com a morte religiosa. Em Florbela, se existem laivos de religiosidade é mais num sentido místico, na procura de uma infinitude, de algo que escape a uma visão perplexa e inquieta. Mas descodifiquemos o carácter profundamente sensual desta poesia, onde as mãos e os beijos adquirem uma forte conotação erótica. É uma sensualidade que tanto pode tocar as raias de uma entronização de eros, como pode diluir-se numa tristeza de um amor perdido ou não correspondido:
Beija-me bem!… Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei prà minha boca!…

Os estados excessivos de aniquilamento que caracterizam a sua poesia são eles próprios denunciadores de uma vida tumultuosa. Assim as paixões e o modo como são vividas.

Benditos sejam todos que te amarem!
Os que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão, fervente, louca!

A paixão é um estádio que tem de ser vivido num arrebatamento místico, mesmo que não haja qualquer correspondência com o real. De «pathos» se trata na ânsia de se chegar a uma perfeição, limbo existencial que toca um lirismo profundo.

Cortesia de eb1matosinhos6rcts  

Mas como é vivido o quotidiano? Sob o tédio que remete não ocasionalmente para um «lago plácido dormente».

Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente:
o mesmo lago plácido dormente…
E os dias, sempre os mesmos, a correr…

Daí se nota a mesma imperiosa atitude de radicalismo. Entre a morte que se projecta num elanguescimento dos sentidos, num torpor algo mediúnico e a vida do eros, enlouquecimento do ser.

Gosto da noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!…

O pendor nocturno revela-se nas tonalidades escolhidas, desde os tons de roxos até aos soturnos negros. A propensão para a morte, a noite, o negrume, a tristeza relva desse desequilíbrio entre os «thanatos» e o eros. No Livro de Soror Saudade prolongam-se as grandes temáticas que entrevíramos no Livro de Mágoas. O eros é mais forte que o thanatos, porventura:

Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E, nesse beijo, Amor, que eu não te dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

E é em torno do eros que se encontra no labirinto das palavras uma chave para esse eu tão problemático. Talvez um dos sonetos mais labirínticos se condense em a noite que desce sobre os olhos cansados, adormecendo o ser. Para além desta ideia encontra-se um poema de grande sensualidade:

A noite vai descendo, sempre calma…
Meu doce Amor tu beijas a minh’alma
Beijando nesta hora a minha boca.

Neste poema encontram-se alguns dos traços mais interessantes da poesia de Florbela. Por um lado, o pendor radical e afectivo pela noite, pelo crepúsculo. Por outro, a noite, triste e pessimista que se avizinha, transforma-se em embriaguez e loucura, em algo que se plasma no genesíaco, na embriaguez dos sentidos. A noite hcalma pressente o enlace dos amantes. Este poema radicaliza de um modo muito original a simbólica da noite, na sua proximidade da morte, abeirando-se calma e dramaticamente e transmudando-se numa apoteose de corpos que se amam». In Cecília Barreira, Instituto Camões.

Cortesia do Centro Virtual Camões/JDACT