quinta-feira, 18 de outubro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Colette era a autora favorita das donzelas. Lia-se La Retraite Sentimentale no original. Se no cinema se preferia o de origem norte-americana, o francês não deixava de se destacar. Il est charmant, era o título de um grande êxito da época, em 1922»


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«La Garçonne, o polémico romance de Victor Margueritte, teve uma tradução brasileira em 1923, mas em 1927 é apresentado, adaptado ao teatro no Trindade. Na notícia que do acontecimento se fez refere-se o ‘escandaloso romance’ de Victor Margueritte. A estoria, do romance e da peça, não é especialmente escandalosa. Monica Lerbier, interpretada no palco por Lucília Simões, o protótipo da rapariga moderna, abandona a família entregando-se à droga, opio e cocaína; no final, acaba por se regenerar pelo amor sério de um homem. Se La Garçonne de Margueritte não se difundiu no nosso país por via literária tendo em conta a tradução brasileira, teve de certeza repercussões em Lisboa, por via teatral. Henri Ardel, nome bem conhecido em finais dos anos 10 e ao longo dos anos 20, católico moralizante, constava das bibliotecas das senhoras.
Em O Amor tem duas Caras, drama pós romântico, onde se defrontam duas mulheres, a mensagem moralista é dominante. O padrão da mulher bonita, estouvada, desejada pelo sexo oposto, atraída pela perdição máxima dos anos 20, o universo do cinema, opõe-se ao padrão da mulher séria, corajosa, não tão bonita nem tão apreciada pelos homens. Num drama em jeito de tragedia a heroína boa morre ao salvar uma criança e a má expiará até ao fim da vida a culpabilização desse acto.
O papel da mulher nos romances estrangeiros de maior divulgação em Portugal e junto da população feminina alfabetizada é sempre enaltecido como fada do lar, amante fidelíssima, esposa exemplar. A contraposição a esta imagem encontra-se na mulher, geralmente jovem, que se expõe aos riscos de uma vida não integrada na família, ou por querer trabalhar fora de casa, ou por ser artista, e essa condição é dificilmente aceite para uma mentalidade mais conservadora.
Também é frequente surgir a figura da irmã solteira que vela pelo bem estar da família. Um outro protótipo é o da mulher independente e masculinizada que invariavelmente é infeliz por ter tomado essa opção na vida. Neste romance, a emancipada e sem dúvida uma mulher triste, ama um homem casado, lê volumes de psicologia e interessa-se pela representação de La Garçonne no Odéon de Paris.
Outro traço particular da mulher emancipada e a cultura. Nelinha Sampaio, personagem de Memorias Duma Mulher da Época de Diana de Liz, traduz Ibsen e sabe distinguir Van Dick de Botticelli. Maria Moniz, outra personagem, cita com grande facilidade um certo número de autores.
A erudita não é vista com bons olhos, E mesmo ridicularizada. Como em O Baile dos Bastinhos de Armando Ferreira da série Lisboa Sem Camisa embora já publicado em 1935. Por um lado fala-se da influência nítida do cinema. Compravam-se retratos de Ramon Novarro e charutos de Monterrey. A Fifi e a Loló copiavam os costumes franceses e deixavam-se seduzir pelo estilo dos actores norte-americanos.
Estava-se em finais dos anos 20. O Moisés principiava a embirrar com a quantidade de gente que a Fifi agora conhecia. Era o Douglas, o Clive, o Boyer, e ainda por cima conhecendo-lhes as intimidades, a cor das gravatas, a marca dos cigarros, o dia do nascimento...
Colette era a autora favorita das donzelas. Lia-se La Retraite Sentimentale no original. Se no cinema se preferia o de origem norte-americana, o francês não deixava de se destacar. Il est charmant, era o título de um grande êxito da época, em 1922.
La Garçonne vai configurar um modelo feminino. Por exemplo, em O Amor à Parisiense de Clément Vautel surge-nos a ‘menina’ emancipada que sai amiudadamente à noite, o que era criticável do ponto de vista moral, e que usava ‘o cabelo à Joãozinho, os braços ao léu, decote por cima e por baixo’. A expressão ‘à Joãozinho’ que teve longa vida é de certo modo a tradução de ‘à garçonne’». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT