sábado, 27 de outubro de 2012

A Historiografia Sociológica de António Sérgio. Victor Sá. «Foi essa uma forma de nos alienar, aos Portugueses, da nossa consciência nacional, e de facilitar a submissão do ensino da História pátria, afinal o inverso do que havia preconizado Cortesão às conveniências da ideologia fascista então dominante»

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«Para que a História pudesse responder esclarecedoramente aos problemas que lhe eram postos em busca do porvir, os próprios métodos de a escrever tinham de ser repensados e substituídos, em função de problemáticas novas. Este foi o grande papel de Sérgio, a sua contribuição para revolucionar a historiografia portuguesa. Disse-o em 1949:
  • ‘Os caminhos da renovação que em nossa História iniciei consistiram muito menos nas interpretações alvitradas, e nos trabalhos de análise com que pretendi aboná-las, do que na própria circunstância de querer interpretar e entender, do que na nova mentalidade com que encarava as coisas, do que na perspectiva sociológica em que colocava os factos, do que na introdução da problemática onde se encontrava relatos, onde só havia aceitação das interpretações dos cronistas. Foi assim que Aljubarrota e a conquista de Ceuta, foi assim que as navegações, foi assim que as conquistas se tornaram problemas sociais-económicos, em vez de narrativas de aventureirismo céltico’.
Neste breve trabalho sobre a historiografia sociológica de Sérgio vamos tentar apresentar a génese e os condicionalismos determinantes da sua interpretação da História de Portugal, que foi o tema predominante, no todo ou parcialmente, das suas reflexões com expressão historiográfica. Trata-se de um longo processo interpretativo iniciado em 1913, que teve o seu período mais vigoroso nos primeiros anos de 1920 e culminou em 1929, já no exílio, com a publicação em Espanha, e impedimento de circulação no nosso país, da sua História de Portugal.
Só depois da morte do Autor, 1969, é que, em 1972, passados 43 anos, uma vida!, aparece a primeira edição portuguesa, agora sob o título de Breve Interpretação da História de Portugal. Significativo é que, desde então, a obra se tenha esgotado sucessivamente, atingindo sete reedições em sete anos, o que se traduz na média de uma edição por ano. A avidez com que as novas gerações têm acolhido esta obra, que se pode considerar afinal como sendo a mensagem póstuma de Sérgio, dá-nos a medida, pelo seu significado negativo inverso, do que representou o crime cultural que privou as gerações anteriores das reflexões que aquela interpretação sugere. Foi essa uma forma de nos alienar, aos Portugueses, da nossa consciência nacional, e de facilitar a submissão do ensino da História pátria, afinal o inverso do que havia preconizado Cortesão às conveniências da ideologia fascista então dominante.
No entanto, Sérgio não foi apenas um crítico e um problematizador. Foi também, para muitos, um satírico do academismo, do dogmatismo e do especialismo infecundo. Ao discutir a tese de um professor que o impugnara no final da década de 1920, agregou o seguinte comentário:
  • ‘A tese a que aqui se responde não mereceria discussão se ela não fosse um documento típico sobre a nossa realidade universitária. De facto, o autor, graças a ela, foi admitido no corpo docente da Faculdade de Letras…’
Ou então, a propósito da importância da ‘fantasia’ na busca de hipóteses científicas, escandaliza os formalistas com estas pouco graves comparações:
  • ‘Pela leitura, acaso, de bons romances policiais, deveria começar a educação científica de toda a espécie de investigadores; nesse campo, dou mais pela análise de certo conto de Poë que por todo o ensino pedantesco e grave de certos pedantíssimos universitários’.
E aos positivistas que lhe dissessem que a demonstração de uma hipótese histórica residia no testemunho de um documento e só nele, respondia, esclarecendo:
  • ‘Isso, em primeiro lugar, é uma noção não crítica do testemunho histórico. A primeira operação do erudito crítico não é a de dar fé ao documento que lê: é a de criticar o testemunho dele. O testemunho histórico não é um Deus: quem escreveu o testemunho foi um homem falível, como outro qualquer, sobretudo o autor do testemunho directo. Não crítico, por exemplo, é o autor da tese em que sou impugnado. Em 1928, exilado já em Paris, repetia ainda; está aí, na estupidez, o escolho primário e omnipresente para uma verdadeira reforma da nossa grei. A estupidez absorve-nos, suga-nos, arruína-nos, mata-nos como clamava Gusmão da fradaria’».
In Victor Sá, A Historiografia Sociológica de António Sérgio, Instituto de Cultura Portuguesa, CV camões, Biblioteca Breve, Gráfica da Livraria Bertrand, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT