«A Franga; Pois bem!
Levantaram altares a esse grande homem que ensinava a verdade ao género humano
e salvava a vida ao género animal?
O Frango; Não, foi horrorizado
pelos cristãos que nos comem e que ainda hoje repudiam a sua memória; disseram
que era ímpio e que eram falsas as suas virtudes, pois que era um pagão.
A Franga: Que a gulodice
provoque hediondos danos! Ouvi, no outro dia, naquela espécie de granja próxima
do nosso galinheiro, um homem que falava diante de outros homens que não falavam;
exclamava que ‘Deus havia feito um pacto connosco e com os outros animais
chamados homens; que Deus os havia
proibido de se alimentarem do nosso sangue e da nossa carne’. Como podem eles
juntar a essa salvaguarda tão afirmativa a permissão de devorar os nossos membros
fervidos ou assados? É impossível, quando nos cortam o pescoço, que não reste muito
sangue nas nossas veias; esse sangue mistura-se necessariamente à nossa carne; desobedecem,
portanto, visivelmente a Deus ao comerem-nos. Além disso, não é um sacrilégio matar
e devorar gente com quem Deus firmou um pacto? Seria um estranho acordo aquele
cuja única cláusula fosse a de nos livrar da morte. Ou o nosso criador não fez
qualquer acordo connosco ou é um crime que nos matem e nos ponham a cozer: não
há hipótese intermédia.
O Frango; Esta não é a única
contradição que reina entre aqueles monstros, nossos eternos inimigos. São há
muito tempo censurados por nunca estarem de acordo seja no que for. Não fazem
as leis senão para as violar e o pior é que as violam conscientemente.
Inventaram cem subterfúgios, cem sofismas, para justificar as suas transgressões.
Servem-se unicamente do pensamento para autorizar as suas injustiças e somente
empregam as palavras para dissimular os seus pensamentos. Imagina tu que no
pequeno país onde vivemos é proibido comer-nos dois dias por semana; facilmente
eles encontram maneira de iludir tal lei, que, aliás, afigurando-se-te
favorável, é deveras bárbara: ordena que durante esses dias se comam os
habitantes das águas, pelo que os homens vão buscar as suas vítimas ao fundo
dos mares e das ribeiras. Devoram criaturas que custam amiúde, cada uma, mais
do que o valor de cem frangos: chamam a isso jejuar, mortificar-se. Enfim,
não creio possível imaginar uma espécie mais irrisória e mais medonha, mais
extravagante e mais sanguinária.
A Franga; Oh, meu Deus!
Estarei eu a ver aquele vilão do moço de cozinha com o seu grande cutelo?
O Frango; Pois é, minha
amiga, é chegada a nossa última hora; recomendemos a nossa alma a Deus.
A Franga: Se eu pudesse
provocar ao desalmado que me comerá uma indigestão que o fizesse rebentar! Os
pequenos vingam-se dos poderosos por desejos vãs e os poderosos fazem disso
troça.
O Frango: Ai! Agarram-me pelo
pescoço. Perdoemos os nossos inimigos.
A Franga: Não aguento;
apertam-me, arrastam-me. Adeus, meu querido frango.
O Frango: Adeus, por toda a
eternidade, minha querida franga».
In Voltaire, Diálogos do Frango e da Franga, Arbor Littera, 2010, ISBN
978-989-8292-39-1.
Cortesia de Arbor Littera/JDACT