Prato, Itália
Cortesia de wikipedia
Os cavalos
O mundo de Guermantes
«O príncipe Eugénio da Suécia deteve-se no meio da sala. – Escute, disse
ele.
Através dos carvalhos do Oakhill e dos pinheiros do parque de
Waldemarsudden, para lá do braço de mar que penetra na terra até ao Nybroplan,
no coração de Estocolmo, o vento trazia um terno e triste queixume. Não era o
melancólico apelo das sereias dos barcos que vinham do mar para o porto, nem o
grito brumoso das gaivotas; era uma voz feminina, distraída e dolente. - São os
cavalos do Tivoli, o luna-parque que está diante do Skansen - disse o príncipe
Eugénio em voz baixa.
Aproximámo-nos das grandes janelas que davam para o parque e apoiámos
os rostos contra os vidros ligeiramente embaciados pelo nevoeiro azul que subia
do mar. Ao longo do caminho que segue o declive da colina, três cavalos brancos
desciam a passo incerto, seguidos por uma rapariga vestida de amarelo: passaram
por uma porta gradeada e desceram até uma pequena praia repleta de cuters, de canoas e de barcos de pesca
vermelhos e verdes.
Era um claro dia de Setembro, de uma delicadeza quase primaveril. O
Outono avermelhava já as velhas árvores do Oakhill. No braço de mar sobre o qual
avança o promontório em que está construída a vila de Waldemarsudden,
residência do príncipe Eugénio, irmão do rei Gustavo V da Suécia, passavam
grandes barcos cinzentos levando, pintados no costado, grandes pavilhões suecos
de cruz amarela sobre fundo azul. Nos seus voos, as gaivotas gritavam queixumes
roucos como soluços de criança. Lá em baixo, ao longo dos cais do Nybroplan e
do Strandwägen, viam-se balançar os vapores brancos, com doces nomes de aldeias
e de ilhas, que andam numa roda-viva entre Estocolmo e o arquipélago. Atrás do
arsenal, uma nuvem de fumarada azul silvava, cortada de tempos-a-tempos pelo
relâmpago branco de um esvoaçar de gaivotas. O vento trazia o som das pequenas
orquestras do Belmannsro e do Hasselbacken, os gritos de um grupo de
marinheiros, de soldados, de raparigas e de crianças em redor dos acrobatas,
dos malabaristas e dos músicos ambulantes que estacionavam todo o dia diante da
entrada do Skansen.
O príncipe Eugénio seguia os cavalos com um olhar atento e afectuoso,
os olhos semicerrados sob as pálpebras claras, estriadas de finas artérias
azuis. Visto de perfil, em contraluz, na claridade lânguida do poente, o seu semblante
rosado, com aqueles lábios um pouco túmidos, gulosos, aos quais o bigode branco
dava uma amabilidade quase pueril, aquele nariz aquilino, a fronte alta coroada
de cabelos muito brancos, frisados, despenteados como os de uma criança quando
acorda, ofereciam ao meu olhar o desenho de medalha do rosto dos Bernadotte. De
toda a família real da Suécia, aquele que mais se parece como marechal de
Napoleão, fundador da dinastia, é o príncipe Eugénio; e este perfil nítido,
cortante, quase duro, contrasta singularmente com a doçura do seu olhar, a
delicada elegância da sua maneira de falar, de sorrir, de mover as suas belas
mãos brancas de dedos pálidos e finos, as mãos dos Bernadotte. Eu tinha
ido-ver, alguns dias antes, num estabelecimento de Estocolmo, os bordados que o
rei Gustavo V, no decurso das longas noites de Inverno, no palácio real
desenhado por Tessin, e nas brancas noites de Verão, no seu castelo de
Drottningholm, rodeado dos seus familiares e dos dignitários da corte mais
íntimos, fazia com uma graça, uma delicadeza de desenho e de execução que
lembravam a antiga arte veneziana, flamenga e francesa. O príncipe Eugénio não borda:
é pintor. A sua forma de vestir revela essas maneiras livres, negligentes do
Montmartre de há cinquenta anos, do tempo em que o príncipe Eugénio e
Montmartre eram jovens. Está vestido com uma espessa jaqueta de tweed cor de tabaco, num corte fora de
moda, abotoando alto.
Sobre a camisa azul-pálida, com fios brancos um pouco fanados, uma
gravata de tricot, torcida como uma
trança de cabelos, punha a sombra de um azul mais escuro. - Todos os dias, a
esta hora, eles descem até ao mar - disse o príncipe Eugénio em voz baixa. Na
claridade rósea e azul-clara do poente, estes três cavalos brancos seguidos por
uma rapariga de vestido amarelo eram tristes e muito belos. Mergulhados na água
até aos jarretes, moviam a cabeça espalhando a crina sobre o arco alongado do pescoço
e relinchavam. O Sol escondia-se. Havia já muitos meses que eu não via o
pôr-do-sol». In Curzio Malaparte, Kaputt, Edição Livros do Brasil, Colecção
Dois Mundos, Lisboa.
Cortesia E. Livros do Brasil/JDACT