O Liber Fidei
e o seu contributo para uma protogramática do Português
«A escolha, para algumas breves reflexões linguísticas,
desta colectânea que ‘pelo número, antiguidade e valor dos documentos
transcritos é o maior e o mais importante cartulário português e um dos mais
notáveis da Europa’, decidiram-na não propriamente estes epítetos de tão
extraordinária individuação, mas os trinta anos de trabalhos despendidos, não
obstante os decorrentes da sobrecarga de leccionação e investigação, pelo Doutor
Avelino de Jesus da Costa no intuito de prendar a alta cultura com a edição
crítica, em três tomos (I, 1965; II, 1975; III, 1990) desse monumento cujo
original foi pertença do Cabido da Sé de Braga, donde transitou para a
Biblioteca e Arquivo Distrital, hoje incorporados na Universidade do Minho.
Compõem o Liber
Fidei 954 textos, inclusive os repetidos, com um âmbito cronológico
estendendo-se desde o ano 569 até 1253, dado que o último daqueles não passa de
rápido termo de aceitação, em vernáculo, de um ‘Breve de Clemente X’, de 1712,
cuja transcrição parou nas primeiras cinco palavras latinas. Curiosamente se
recorda que os Diplomata et Chartae
agrupam 952 documentos, menos dois portanto que o célebre cartulário de Braga,
iniciado provavelmente no século XII. Repositórios de variadíssimas
informações, os cartulários, cujo espécime mais antigo é germânico de três
séculos antes, tornam-se mais frequentes a partir do undécimo, de tal modo que,
duas centúrias volvidas, possuíam tais instrumentos notariais os bispados,
cabidos, colegiadas, abadias e mosteiros, casas senhoriais e ordens militares,
universidades e outras instituições como igrejas e capelas, confrarias,
hospitais e leprosarias, associações de mesteres e corporações municipais.
Não existe um inventário geral dos cartulários da Idade
Média, mas eles foram numerosos. Só na Bibliographie générale des
cartulaires français, de Stein (1907) atingem a cota de 4522. Já, porém, em
1847 saía em Paris o Catalogue générale des cartulaires des archives
départementales; e desde 1889 Dinifle e Chatelain se ocupavam do bem
provido cartulário da Sorbona. Entre nós, o maior empreendimento algo congénere
e quase coevo pertenceu a Herculano e à Academia Real das Ciências, através dos
Portugaliae Monumenta Historica, que desde 1856 até 1888 se enriquecia
com quatro grandes tomos. Na Espanha o interesse desperta-o mormente o índice
cronológico do Cartoral de Carles Many a la catedral de Gerona, de Botet
y Sisó (Barcelona, 1905-1908), com 637 escrituras dos séculos IX a XIV, porque
logo depois, em 1910-1911, vem a lume o Cartulario del Monasterio de San
Cugat del Vallés (3 vols.), embora seja já de 1891 a edição do de Santa
Maria de Silos, da responsabilidade de Ferotin.
Quando em 1933 Joseph Huber publicou o seu Altportugiesisches
Elementarbuch, lançado pela Fundação Gulbenkian em 1990, a documentação
especial a que pôde ater-se não foi muito além da reunida por Herculano. Hoje
encontraria muito mais: entre outros, os 314 textos do Baio-Ferrado do
Mosteiro de Grijó, não obstante 33 deles já coligidos nos Diplomata et
Chartae (1867) e três (aliás, bulas pontifícias) aproveitados por Carl
Erdmann; e, evidentemente, os 953 do Liber Fidei, descontados alguns que
conheceu por outras vias.
NOTA: Note-se que Carl Erdmann transcreveu também diversos
documentos do Liber Fidei,
e muitos mais o Abade de Tagilde em Vimaranis
Monumenta Historica, fontes estas não utilizadas
por Joseph Huber; o mesmo se diga de António Brandão, Contador de Argote,
Alberto Feio e outros, que Huber não cita.
Apesar disso e mau grado rectificações a introduzir, ainda é
‘o único manual que procura descrever em conjunto a gramática da língua em que
estão escritos os textos da primeira época’ do galego-português, como sublinhou
Lindley Cintra nas “Palavras Prévias”
da edição da Gulbenkian». In Amadeu
Torres, texto publicado na revista Theologica,
2ª série, 28, 2, 1993, Letras e Letras, Universidade do Minho.
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