O Adido Cultural
«Devo a Josette largos minutos de bem-estar: talvez pudesse
prolongá-los. Prefiro, contudo, retirar-me enquanto dorme. Está notoriamente
exausta. Fui, decerto, esta noite, o último dos seus clientes. Que devem ser
bastantes, a avaliar pelas estatísticas do que ganha; forneceu-mas enquanto
trabalhava.
Repousa de borco, o rosto sobre o lado esquerdo, as narinas flectindo a
um leve ressonar. Rosto jovem, testa alta, cabelo preto e denso. Ao corpo,
tapa-o parcialmente o lençol branco sujo, deixando de fora um dos belos joelhos,
trigueiro, dobrado, a exaltar o redondo. De arregalar o olho a qualquer amador
de poses.
Gostaria de abandonar o hotel-bordel sem que ela desse por isso. Prendo
algumas notas sob a base do candeeiro, cuja lâmpada não chegou a ser apagada.
Visto-me e calço-me precipitadamente, tolhe-me um nervosismo idiota. Que adido
cultural não se sentiria um homenzinho verdadeiramente menor, ao ser caçado
pela brigada mundana numa das mal-afamadas hospedarias parisienses? Só de
admitir a hipótese cai-me o sapato, desalinho os botões da camisa, ao metê-los
nas casas, e os da braguilha nem se fala.
Pergunto-me por que estou aqui, por que vim aqui. Nora bateu em
retirada sem dizer água vai? E depois? Nunca ignorei que trocava
correspondência regular com o seu antigo amante de Lisboa. Mas daí a partir… Na
verdade, não estou em mim. Recorri ao álcool e a Josette, que substituem o
psiquiatra com vantagem e por um preço relativamente módico. Josette disse-me
em francês da província: nenhuma mulher vale uma lágrima. Na altura, achei
bonito. Depois pensei que a deveria ter aconselhado a adornar com poucas
palavras o seu comércio. Que melhor faria se aperfeiçoasse as magias do corpo.
As palavras só encrencam.
O casaco, de xadrez, os sapatos de polimento, a camisa, a gravata com o
nó a esconder-se, debaixo do colarinho, chegada ao lado direito, ah, o chapéu e
os óculos escuros, estão mais ou menos, finalmente, em su sitio. Vejo, no espelho, um tipo envelhecido, acabado. Vejo, por
cima do ombro, o rabo de Josette. Vejo Nora, sempre.
Passo, pé ante pé, em frente da gaiola de vidro onde o concierge afunda a cabeça num jornal
desportivo. Le Regent se chama o
hotel, cuja porta principal acabo de transpor. Um quartier latin sonâmbulo espera-me às duas da madrugada.
Cai a paciente geada de Outubro. Subo a gola do casaco, ajeito os óculos.
Sou o adido cultural a abater ao efectivo. O Governo não gosta de mal-casados à
testa de lugares de responsabilidade. Que dirão o embaixador e sua mulher?
É. O Governo estava tão ansioso por nomear para o cargo um homem de
Letras que, ao primeiro poeta disponível que lhe apareceu, chamou-lhe um figo.
Terá fechado os olhos a coisas decerto do seu conhecimento. Olha que menino, o
Governo (e a sua corte de bisbilhoteiras amestradas) a negligenciar pecados tão
transparentes como os meus. Apostámos, admito, na mesma jogada: fazer sair Nora
de Lisboa. Foi projecto comum, meu e do Governo, levá-la a preencher o tempo
todo com as recepções, os contactos, os espectáculos, abrindo-lhe os salões da
diplomacia cultural snob e ajudando-a
a esquecer aquele que, contrariando da forma mais grosseira elementares
orientações bíblicas, fruía, à descarada, os favores da mulher do próximo. Do
ponto de vista do Governo, era preciso a todo o custo colocar um poeta em
Paris, mas o único livre tinha uma vida conjugal desgraçada, longe da imagem
moralona do país missionário. Enfim, pesados os prós e os contras, o Governo
resolvera arriscar. Que melhor cidade para julgar com indulgência vidas com
defeito?
Nora, porém, iludiu as expectativas postas na mudança. Entrou a
definhar, a consumir-se, até ficar pele e osso. As saudades de certa cama de
Lisboa atormentavam-na acima do que podia suportar, penso eu. Raramente me
acompanhava e a senhora embaixatriz não perdia a mínima oportunidade para fazer
reparos um pouco vexatórios a respeito de razões de estado e inerentes
obrigações protocolares. Borrifo-me no protocolo. Mas estou à rasca. Amo Nora,
caraças. E agora?» In Júlio Conrado, Gente do Metro, Vega, Lisboa, Colecção O Chão da
Palavra, ficção, Prémio literário cidade do Montijo, 1988.
Cortesia de Vega/JDACT