Retórica da Acção
«Não achas, caro Valério, que em face dos exemplos devemos modificar um
pouco a ideia que tínhamos formado da retórica? Habituara-se o nosso espírito a
olhá-la como a acumulação de frases bem ressoantes e balançadas, de períodos
que todos se resolviam em música e larga sonoridade de palavras, de imagens que
se ligavam ininterruptas e davam ao discurso aquele seu ar de fogo de artifício
que prendia, subjugava a massa dos ouvintes. A oratória caracterizava-se ainda,
depois de todas as críticas e de todas as troças, pelo romantismo das evocações
e pelo gosto da ampla sintaxe; era-se tanto mais eloquente quanto mais se aproximavam
os pensamentos da melancolia de Passos ou das indignações de Leal, quanto mais
se assemelhava a forma ao talhe dos clássicos e se cometia a proeza de galgar
uma página sem um ponto final. Seguia-se o exemplo que vinha de longe,
aprendera-se com exactidão, embora com talento muitíssimo menor, aquela arte
que Cícero ensinara de dizer sempre as mesmas coisas por diferentes maneiras,
de fazer que uma única e pobre ideia se estendesse durante horas, sem uma circunstância,
sem um aspecto, sem uma consequência que a pudessem renovar. O êxito de má
literatura que daqui se colhia sobrelevava no ânimo de todos a inutilidade de
tanta bela frase perante a prática. Nenhum problema encontrava a sua solução,
não ficava melhor o país depois do suor do orador e dos aplausos do público.
Após a festa nocturna em que o charco parecera por momentos incendiado de estrelas,
espapava-se sob o mesmo silêncio de moleza a mesma lama infecunda.
O processo, no entanto, acabou por fatigar; sem que ninguém tivesse a
coragem ou, porventura, a suficiente clareza de espírito para o dizer e
reclamar outra vida, todos sentiam que a rodagem estava gasta. E bateram palmas
quando se proclamou a queda da retórica, quando surgiram pessoas todas
viradas à acção a quem o discurso importunava e tão exageradas, tão possuídas
do seu fim que não distinguiam da eloquência de aparato o indispensável diálogo.
Deixou-se de afirmar que o sonho e o arroubo eram vitais e passou-se ao tema de
proceder e construir. O edifício da retórica que parecia tão seguro abateu-se
num momento; sobre as ruínas outros homens se ergueram, claros, incisivos, duros
nas expressões, ríspidos nos métodos, ansiosos de não perder tempo e que sem
intervalo juravam a necessidade e o desejo de que todos agissem. Outros mesmos
recusavam-se a falar, numa completa reacção, afastavam-se de tudo que se
pudesse assemelhar aos ruídos e vãs disputas do foro, repeliam as grandes
matinadas dos seus antecessores. Reinou a frase breve, com uma ordem de
comando, o período curto e seco.
Mudaram os assuntos e os estilos. Toda a gente se moldou a uma nova
cadência e houve no mundo um zumbido diferente como de motor que acelera o
andamento. Os que se deleitavam com a opulência da Ásia, pasmaram depois ante o
agreste laconismo. Simplesmente, como já compreendeste, caro Valério,
continuaram a existir os dois imprescindíveis elementos do falar e do escutar;
os que não oram exprimem-se por mímica, o que não é menos inútil. Poderíamos
até constituir uma fábula sobre as idênticas rãs que por terem variado de tema
ou emudecido à borda do paúl pretendem que os outros animais as tomem por
castores; ao que se opõe a natureza». In Agostinho da Silva, Considerações e
Outros Textos, Editorial Minerva, Alfinete 4, Assírio e Alvim, 1988.
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