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Canto I
O Despertar de um Deus
Nasceu a Águia na Montanha.
O ninho foi hórrida brenha
numa caverna exposta aos
ventos,
- Hirta e petrificada boca,
por onde uma Sibila de
voz rouca
prediz ao Mundo os novos
sofrimentos.
Átrio do Céu, assenta numa
rocha,
que arranca da Montanha e
desabrocha
como uma flor em plena imensidade;
do pétreo cálix, das entranhas
virgens,
sai um perfume tal, que
dá vertigens,
que a flor tem por aroma a Tempestade.
Nicho de catedral, abandonado,
penhascoso baldaquino armado,
sem que um pobre santinho
ali se acoite;
ou donde foge algum ligeiro
santo
tentado pelo Céu, e voa tanto
que só recolhe lá por alta
noite.
Átrio do Céu, p’ra que entre
e saia o Dia;
é lá que a Aurora se atavia
para mostrar ao Mundo o claro
rosto;
átrio do Azul que a Madrugada
escolhe,
também ali se acolhe
o derradeiro raio do Sol-posto.
De tão alto, sublime, etéreo
assento,
com que arrebatamento
o olhar agudo se
estendia ao largo:
píncaros, vales, azulados,
montes…
Líquidos horizontes…
O volutuoso abraço do
Mar-largo…!
Mal a Águia nasceu,
fitou logo a Montanha, o
Mar e o Ceu:
primeiro olhar, e de tal modo intenso
que nunca o seu profundo
coração
sentiu Desejo, Dor, ou
Comoção,
que envergonhasse aquele
espaço imenso.
Olhar d’um deus que
acorda
de triste e humano sonho,
e que recorda
a sua gloriosa, eterna
Vida,
e ao ver sua divina Criação,
dentro de si reune a comoção
de toda a imensidade
comovida.
Abismos, onde as
cataratas soam,
vales e montes. Mar,
nuvens que voam,
ninguém vosso desejo imenso
acalma;
nenhum de vós, erguendo a
mesma prece,
a si mesmo ou aos outros
se conhece:
só os deuses entendem a voss’alma.
Águia divina, que entendeste
o Mundo,
tu viste como o Céu era profundo
e o Mar inesgotável,
que tudo é Vida e toda a
vida é Luta,
e, que arrancando a cada
coisa viva
Sua virtude e espírito indomável,
Em ti retiniste as forças
mais estranhas,
tal a firmeza duma rocha
bruta,
a vontade tenaz d'arvore
altiva,
o arranco vitorioso das montanhas
e o ímpeto dum rio ou dum
vulcão.
Ah! Quando o abismo mais
era insondável,
mais teu Desejo tinha de
aflição,
te erguia o voo, te crispava
a garra
num supremo transporte;
como um navio que ao soltar
da amarra
toma o rumo da Morte,
vira a robusta proa á imensidade
e larga toda a vela á Tempestade,
a quantos ventos há do
Sul ao Norte,
para que ao menos roto, espedaçado,
algum destroço, inda animado
daquele anseio etéreo,
vá sobre as águas a
boiar,
e enfim possa aportar
Às praias do Oceano do Mistério!
In Jaime Cortesão, A Morte
da Águia, Poema Heróico, Livraria Editora Guimarães, Lisboa, 1910, The Library of
the University of California los Angeles, PQ 9261, C8196M8, 2007
Cortesia de Editora Guimarães/JDACT