jdact
«A morte de sua esposa
fechou o ciclo da sua aventura material. Por mais que o seu nome, o seu
destino, a sua situação única e privilegiada parecessem encaminhá-lo noutra
direcção, não mais Nuno Alvarez consentiu em submeter-se ao que lhe apontavam
como uma condição de glória.
Não foi possível
convencê-lo de um segundo matrimónio. E mais tratava-se ainda de uma nobre
donzela, Beatriz de Castro, filha do conde Álvaro Pirez de Castro, conhecida
também pela sua formosura. Nuno Álvaro fugiu de Braga, não vendo outra forma de
evitar as pressões que de todos os lados se moviam e no receio de, como lhe sucedera
da primeira vez, lutar…. Para vir a ceder, ou então, como era seu desejo,
vencer, mas à custa do descontentamento dos seus amigos, do rei e da rainha,
que também se achavam em Braga, de todos, enfim, que gravitavam em volta dele,
e nele viam já um homem superior ao seu meio e ao seu tempo. Parece-me que deixo em Braga a nuvem que me
pesava sobre o coração! Dizia aos companheiros da viajem, já a caminho das
terras de entre Tejo e Odiana.
Entretanto Nuno Alvarez
não era um coração fechado aos sentimentos da benevolência, da doçura e da
mansidão. Nem uma só vez a sua linha de perfeito cavaleiro, generoso e
magnânimo, obliqua para a crueldade. Sabe-se como na Idade Média eram
considerados os delitos cometidos contra a religião ou os lugares e objectos
sagrados. O sacrilégio assumia as proporções dum facto delituoso sui generis, para que era difícil obter
absolvição.
Achava-se um dia num
lugar de Castela quando lhe vieram dizer que um escudeiro da sua hoste, Gonçalo
Gil de Veiros, roubara duma igreja um cálix. Preso, justiçado, sentenciado, o
Condestável ordenou que ele fosse queimado. Acudiram pressurosos em favor do
miserável os capitães e cavaleiros. O Condestável cedeu por fim, parecendo
contrariado somente para melhor manifestar o seu desgosto e convertendo a pena
na proibição de que esse soldado de futuro pudesse fazer parte e combater
incorporado na sua vanguarda!
Tal era a fina flor da
cavalaria interpretada pelos seus mais distintos representantes!
É também digno de nota o
seu procedimento para com as mulheres, os oprimidos e os fracos, a sua
magnanimidade para com os inimigos, a sua generosidade para com os adversários.
Preparava-se-lhe um dia uma emboscada, onde o prendessem e acabassem. Era em
Coimbra. Uma condessa, mulher do conde Henrique Manoel, lembrara-se de vingar o
marido, que, quando governador de Sintra, o Condestável derrotara. Juntando
parentes e amigos, assoldadando homens de guerra, ela pretendia apossar-se de
Nuno Alvarez e da sua gente, preparando tudo secretamente.
Mas os soldados do
Condestável souberam-no e, conquanto poucos em numero, logo resolveram o
assalto aos paços da condessa, fazendo-lhe pagar caro a insidiosa emboscada.
Nuno Alvarez soube-o à última hora, e logo correu a prevenir a violência dos
seus, quebrando com esta generosidade a hipocrisia da violência, que lhe
preparavam.
Doutra vez tratava-se do
assalto a um dos castelos mais fortes que se conhecia, o qual estava pelo lado
de Castela. Nada fazia recuar os homens de armas que militavam sob as ordens do
Condestável.
A bravura do chefe comunicava-se-lhes.
Já se julgavam invencíveis como participantes da excepção, que o cobria a ele.
Assim, quando, desta vez, acometeram o castelo de Neiva, Nuno Alvarez não o
sabia. Participando-lho, chegou tão asinha como pôde, e como quer que o alcaide
fosse morto dum golpe que lhe abriu o bacinete, o castelo rendeu-se. Temendo
desacatos à sua pessoa, a mulher do alcaide veio então ter com o Condestável
pedindo ‘que lhe mandasse guardar sua honra’. No dia seguinte alguns escudeiros
e homens de pé conduziam-na com toda a segurança e respeito a seu pai, inimigo
de Portugal e portanto de Nuno Alvarez, pois estava em Ponte de Lima, que
sustentava por el-rei de Castela.
E não lemos nós aquele tocante episódio demonstrativo da sua muita
bondade natural, acontecido com um cego…? Nuno Alvarez vinha a caminho de Coimbra,
tendo partido de Torres Vedras com todos os seus homens e a população do burgo,
que, com medo das represálias dos castelhanos, se abalou em massa atrás das
hostes do Condestável. Torres Vedras estava pelos espanhóis e tornando-se
improfícua uma tentativa de assalto por meio de mina o Condestável resolveu-se
a sair para Coimbra, onde iam celebrar-se as cortes para a aclamação de João I.
Na abalada ouviu-se então, por entre o vozear dos que partiam, os gritos dum
pobre cego rogando que o não deixassem ali. Nuno Alvarez mandou-o subir para as
ancas da sua mula e ambos de dois seguiram assim durante umas quatro léguas,
até onde o cego julgou bem de ficar». In Mendes dos Remédios, Chronica do
Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez Pereira, Lymen, França Amado,
Subsídios para o estudo da História da Literatura Portuguesa, XIV, Coimbra,
1911.
Cortesia Lymen/JDACT