sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Raiz de Orvalho. Mia Couto. «Como a desamparada pluma subo ao reino da inconstância para alojar a palavra inquieta. Na distância que percorro eu mudo de ser, permuto de existência…»

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No auge da tempestade há sempre um pássaro para nos tranquilizar. É a ave desconhecida que canta antes de voar’. In René Char.

Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha.
Sou o vento que a desgasta.

Sou pólen sem insecto.

Sou areia sustentando
o sexo das árvores.

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro.

No mundo que combato
morro
no mundo por que luto
nasço.
(1977)

Trajecto
Na vertigem do oceano
Vagueio,
sou ave que com o seu voo
se embriaga.
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso.
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta.
Na distância que percorro
eu mudo de ser,
permuto de existência,
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade,
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo,
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher
(1980)

Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho e Outros Poemas

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