quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «A história portuguesa contém o mesmo número de violências que é possível encontrar em qualquer outra história europeia, quando as sociedades, ou os seus grupos dominantes, privilegiam a guerra em detrimento da paz, esmagando pesadamente o respeito devido à autonomia e à identidade dos Outros»

jdact

Artifícios da História
Alteridade e História
«A longa relação dos portugueses com outros mundos e outros homens constitui uma das preocupações constantes da historiografia portuguesa. Ocupando um lugar privilegiado no espaço historiográfico português, a história das relações multisseculares dos portugueses com um grande número de Outros foi sobretudo, até ao último quartel deste século XX, uma evocação mecânica dos heróis portugueses e dos momentos de glória, baseada numa visão triunfalista que conseguia transformar em vitória espiritual as mais graves e mais humilhantes derrotas portuguesas.
A história portuguesa contém, no entanto, o mesmo número de violências que é possível encontrar em qualquer outra história europeia, quando as sociedades, ou os seus grupos dominantes, privilegiam a guerra em detrimento da paz, esmagando pesadamente o respeito devido à autonomia e à identidade dos Outros.
A grande constante da historiografia portuguesa reside precisamente na dificuldade de dar ao Outro, particularmente ao africano, uma qualquer autonomia: a história portuguesa estaria assim marcada pela rejeição permanente, por vezes brutal, desta autonomia real ou potencial do Outro. Quase sempre ausente, o africano aparece apenas no discurso português, incerto, carregado de referências negativas que o transformam em selvagem ou em marginal. Despojado da sua humanidade, enselvajado, o africano não podia senão ser considerado como "coisa" da natureza, sem autonomia, sem direito à sua própria história.
Esta visão do africano, fortemente enraizada no espaço português através de mitos, de preconceitos, de ideias e de imagens diversas que a historiografia portuguesa ajudou a consolidar, permanece teimosamente em muitos dos seus aspectos. A sua eliminação impõe uma releitura dos documentos e sobretudo uma purificação do aparelho conceptual, abandonando as velhas fórmulas da exaltação nacional e a adopção dos instrumentos teóricos e metodológicos que, nos últimos trinta anos, se foram aperfeiçoando e que hoje permitem um conhecimento cada vez mais rigoroso das formas culturais e dos processos históricos africanos.
Por outras palavras: é urgente uma revisão dos conceitos utilizados pela historiografia, já que eles continuam a orientar, em geral, o estudo da relação com o Outro e o ensino da história, tal como podemos ver nos programas de História do Ensino básico e secundário. Não se trata de ‘actualizar’ os conceitos, mas de eliminar a maior parte, substituindo-os por outros, despidos do europocentrismo do passado e elaborados para explicar as diversidades do mundo.
A análise das relações com o Outro, qualquer que ele seja, passa pelo inventário da alteridade. Esta pode ser de dois tipos:
  • ou a alteridade social, que também podemos chamar cultural;
  • ou a alteridade somática.
O outro aparece neste caso como sendo o inverso absoluto do Mesmo pelo que só pode agir-se repelindo-o, porque manifestamente perigoso para a integridade daquele que vê e, vendo, classifica e qualifica. Quer isto dizer que o elemento essencial da leitura do Outro reside na maneira etnocêntrica como o Mesmo considera o mundo: este só pode ser compreendido por meio dos valores específicos deste Mesmo. Esta maneira de reduzir o mundo aos valores próprios de cada grupo constitui uma prática universal, podendo transformar-se em xenofobia e até em racismo.


Quando os portugueses saem do espaço peninsular para ir ao encontro do Outro levam consigo a certeza da sua autonomia, que contém também a convicção de que os Outros, sejam quais forem, não podem ser senão inferiores: o que não está no nosso espaço não pode possuir qualidades positivas. Daí que a primeira maneira de abordar esse Outro africano se organize como uma espécie de ‘antropologia negativa’, que não pode reter outra coisa que não seja o inventário das formas físicas, das formas naturais, das formas culturais, sobrecarregadas de negatividade». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT