Artifícios da História
Alteridade e História
«A longa relação dos portugueses com outros mundos e outros homens constitui
uma das preocupações constantes da historiografia portuguesa. Ocupando um lugar
privilegiado no espaço historiográfico português, a história das relações
multisseculares dos portugueses com um grande número de Outros foi sobretudo,
até ao último quartel deste século XX, uma evocação mecânica dos heróis
portugueses e dos momentos de glória, baseada numa visão triunfalista que
conseguia transformar em vitória espiritual as mais graves e mais humilhantes
derrotas portuguesas.
A história portuguesa contém, no entanto, o mesmo número de violências
que é possível encontrar em qualquer outra história europeia, quando as sociedades,
ou os seus grupos dominantes, privilegiam a guerra em detrimento da paz,
esmagando pesadamente o respeito devido à autonomia e à identidade dos Outros.
A grande constante da historiografia portuguesa reside precisamente na dificuldade
de dar ao Outro, particularmente ao africano, uma qualquer autonomia: a
história portuguesa estaria assim marcada pela rejeição permanente, por vezes
brutal, desta autonomia real ou potencial do Outro. Quase sempre ausente, o
africano aparece apenas no discurso português, incerto, carregado de referências
negativas que o transformam em selvagem ou em marginal. Despojado da sua
humanidade, enselvajado, o africano não podia senão ser considerado como
"coisa" da natureza, sem autonomia, sem direito à sua própria história.
Esta visão do africano, fortemente enraizada no espaço português
através de mitos, de preconceitos, de ideias e de imagens diversas que a
historiografia portuguesa ajudou a consolidar, permanece teimosamente em muitos
dos seus aspectos. A sua eliminação impõe uma releitura dos documentos e
sobretudo uma purificação do aparelho conceptual, abandonando as velhas
fórmulas da exaltação nacional e a adopção dos instrumentos teóricos e metodológicos
que, nos últimos trinta anos, se foram aperfeiçoando e que hoje permitem um
conhecimento cada vez mais rigoroso das formas culturais e dos processos
históricos africanos.
Por outras palavras: é urgente uma revisão dos conceitos utilizados
pela historiografia, já que eles continuam a orientar, em geral, o estudo da
relação com o Outro e o ensino da história, tal como podemos ver nos programas
de História do Ensino básico e secundário. Não se trata de ‘actualizar’ os
conceitos, mas de eliminar a maior parte, substituindo-os por outros, despidos
do europocentrismo do passado e elaborados para explicar as diversidades do
mundo.
A análise das relações com o Outro, qualquer que ele seja, passa pelo inventário
da alteridade. Esta pode ser de dois tipos:
- ou a alteridade social, que também podemos chamar cultural;
- ou a alteridade somática.
O outro aparece neste caso como sendo o inverso absoluto do Mesmo pelo
que só pode agir-se repelindo-o, porque manifestamente perigoso para a
integridade daquele que vê e, vendo, classifica e qualifica. Quer isto dizer que o elemento essencial da leitura do Outro reside na maneira
etnocêntrica como o Mesmo considera o mundo: este só pode ser compreendido por
meio dos valores específicos deste Mesmo. Esta maneira de reduzir o mundo aos
valores próprios de cada grupo constitui uma prática universal, podendo
transformar-se em xenofobia e até em racismo.
Quando os portugueses saem do espaço peninsular para ir ao encontro do
Outro levam consigo a certeza da sua autonomia, que contém também a convicção
de que os Outros, sejam quais forem, não podem ser senão inferiores: o que não
está no nosso espaço não pode possuir qualidades positivas. Daí que a primeira
maneira de abordar esse Outro africano se organize como uma espécie de ‘antropologia
negativa’, que não pode reter outra coisa que não seja o inventário das formas
físicas, das formas naturais, das formas culturais, sobrecarregadas de
negatividade». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença,
Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e
Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN
972-8801-31-9.
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