«As fragilidades desta tese evidenciou-as imediatamente o erudito
brasileiro Raul Soares, lembrando que escrever incorrectamente cartas
particulares é caso corrente na época até entre pessoas cultas; que a
impossibilidade cronológica dos amores de Cristóvão Falcão se baseava numa hipótese
que, afinal de contas, era falsa; enfim, que a história narrada no Crisfal não coincidia com a história da Menina e Moça e das Éclogas. Por outro lado, Raul Soares tentava demonstrar que entre o
Crisfal e as Éclogas de Bernardim existiam diversidades de estilo e de
realização artística suficientes para afirmar a diversidade de autores.
As ulteriores investigações de Carolina Michaëlis, Teófilo Braga e
Braamcamp Freire vieram confirmar a argumentação de Raul Soares, sobretudo no
que respeita à possibilidade cronológica dos amores de Cristóvão e Maria. Mas o
problema não se pode dizer que ficasse resolvido, porque ficou germinando no
espírito de todos a dúvida levantada por Delfim Guimarães: é possível entre
dois autores diversos tal identidade de estilo e de pensamento? As diversidades
apresentadas por Raul Soares já veremos o valor que têm; mas desde já notaremos
que a conclusão a que ele chegou só pode representar uma opinião pessoal,
insuficiente para destruir este facto insofismável:
- a eventualidade de [as poesias de B. R. e as atribuídas a C. F.] serem do mesmo autor não se apresentou unicamente a Delfim Guimarães em 1908; tinha-se apresentado a quási todos os conhecedores das literaturas românicas, de Bouterwek, Sismondi e F. Denis em diante. O primeiro disse em 1805 que sem a epígrafe explicativa o Crisfal podia passar por obra de Bernardim Ribeiro. Independentemente cheguei à mesma conclusão.
Eis um facto que não se confunde com uma opinião pessoal. Carolina
Michaëlis tentou explicá-lo com uma palavra fácil: os dois autores eram congeniais. Mas a verdade é que não há
duas individualidades coincidentes, como não há duas folhas iguais, sobretudo
quando se sai fora da mediocridade; e o génio é tudo quanto há de mais
individual.
Por isso ficou em suspenso a questão: não a resolveu Delfim Guimarães,
porque os seus argumentos eram demasiado frágeis para abater a tradição; não a
resolveram os defensores da tradição, porque não conseguiram dar resposta à
interrogação de novo levantada.
Vou desenrolar todo o processo da questão e ajudar a concluir alguma
coisa. Previamente, proponho este dilema:
- ou o Crisfal é, como se tem afirmado, uma das obras-primas da literatura portuguesa, e portanto o seu autor uma personalidade suficientemente poderosa, original e independente para a criar;
- ou o autor do Crisfal não sabia fazer outra coisa que não fosse imitar o estilo de outro poeta a ponto de se confundir com ele, e o Crisfal seria, não uma obra-prima, mas um boneco de barro a imitar um busto de mármore. Porque, insisto, autores congeniais é coisa que não há.
Atente-se agora nos seguintes pontos:
- A écloga conhecida pelo nome de Crisfal aparece pela primeira vez impressa numa folha volante com este título: Trouas de Chrisfal, por baixo do qual se lê: ‘Trouas de hü pastor, per nome Chrisfal’. Anónima, portanto (conforme Michaëlis, a popularidade da écloga é-nos atestada pelo facto de o nome de baptismo Crisfal ser dado a um fidalgo no reinado de João III).
A Carta
encontramo-la pela primeira vez na edição de Ferrara, 1554.
- A segunda edição da écloga é a de Ferrara. Lê-se no índice dessa edição:‘Hüa muy nomeada e agradavel Egloga chamada Cristal [sic] que diz: Entre sintra a muy prezada Que dizem ser de Cristovã falcam ho que parece alludir ho nome da mesma Egloga’. À cabeça da écloga, no fl. CXXXIII, encontramos simplesmente estes dizeres: Egloga de Cristouam Falcam chamada Crisfal.
continua
In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim
Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0
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